Crônica de Lisboa | da nossa linguagem (ode aos…
No Brasil agridoce nunca deixa um travo amargo na boca. No Brasil um amor impossível é, na verdade, possível: era apenas improvável, mas deu-se um jeito.
E por isso os brasileiros têm a bossa nova, onde a tristeza não é tristeza não, apesar de a cantarem como um sentimento sem fim.
Até a língua falada no Brasil é mais doce, como se nos beijasse todos em cada sílaba que é pronunciada. Para nós tudo é mais literal, disseram-me um dia. Um elevador que está parado (mas vai descer) não está descendo. Da mesma forma, um amor impossível (mas vibrado no nosso corpo) não é possível.
Essa dureza de linguagem, que acentua tudo, tem consequências nos nossos próprios actos. Como se existisse uma equivalência entre ambos. E por isso inventámos a saudade. E sentimos saudade daquilo que vivemos mas, também, daquilo que não nos permitimos viver. Porque decretámos que ali estava uma impossibilidade.
Mas de cada vez que nos deixamos levar pela nostalgia do que poderia ter sido (se não houvesse tantos “ses”) materializamos a sua existência. Quase como se o tivéssemos, de facto, vivido. Como se tivéssemos tocado a pele que nunca conhecemos. Que não conheceremos. Mas que deixou saudade, que queimou a nossa própria pele na noite que nunca existiu, no suspiro que não se deu, no cabelo suave que não caiu sobre o nosso rosto, na gargalhada que veio depois. No abraço apertado. No cheiro do outro, que conhecemos tão bem. Do nós, que é proibido.
Entretanto passou meia vida, e só nos resta a outra metade. E suspiro de alívio por ter tido o privilégio de beijar-te a pele, mesmo que isso tenha acontecido no mundo da imaterialidade, porque tenho a certeza que sentiste o meu beijo tão profundamente quanto eu o senti.
E beijo-te todo, uma última vez.