Lítera l Entrevista – Nossa história – Parte 1/3
André Neto, vocalista da Lítera contando a sua história de como nasceu a banda do bairro Sarandi, zona norte de Porto Alegre. PARTE I – https://youtu.be/sDxtwt4fXLs
André Neto, vocalista da Lítera contando a sua história de como nasceu a banda do bairro Sarandi, zona norte de Porto Alegre. PARTE I – https://youtu.be/sDxtwt4fXLs
Cansei de ter que provar para os outros.
É perda de tempo ficar tentando provar para os outros que tu pode. A construção deve ser pelo simples fato de que tu tem uma meta, um sonho, e esse caminho faz parte do destino.
Minha história não é sobre um complexo de vítima. É sobre redenção. Por mais que às vezes eu me sinta sozinho, essa jornada foi repleta de pessoas fazendo sua parte, alguns mais, outros menos, mas todos deram sua contribuição. Uma vez eu li num post de instagram, nesses perfis de autoconhecimento, que “a vida é como uma viagem de trem, cheia de embarques e desembarques, de pequenos acidentes pelo caminho, de surpresas agradáveis com alguns embarques e de tristezas com os desembarques”. Alguns talvez façam essa viagem até o fim com a gente. Mas não sabemos quem vai ser.
Eu me pergunto: quando eu descer desse trem, do que eu sentirei saudade?
Essa viagem é cheia de atropelos, sonhos, fantasias, esperas, embarques e desembarques. Tenho apenas uma certeza sobre ela: o trem jamais volta. Então, se não for pra viver essa vida, realizando ou até tentando realizar o meu sonho, não faz sentido pra mim. Entender pq estamos, onde estamos, qual a nossa missão ali, o que fazer pra sair… No meio disso muitas pessoas tomam esse trem à passeio. E não tá errado.
Essa é a minha/nossa história e, por incrível que pareça, ela recém começou. Pra quem tá com a gente há mais tempo, eu digo: segue a luta, nunca foi fácil, não seria diferente agora. Todos os insights de como lidar com esses problemas a gente vai compartilhar, vamo vê se a gente consegue se ajudar ou pelo menos se salvar.
Seguimos na pré-produção das músicas e agora, sem pressão, queremos lançar o disco no começo do segundo semestre de 2019. Juntando nossos recursos, saudando aqueles que, por algum motivo, malucos como eu, acreditam num sonho. Em Outubro vamos lançar um single. E em Novembro mais uma canção inédita.
Parafraseando o texto sobre o trem: felicidade enorme perceber que muitas pessoas, como nós, estão dispostas a reconstruir para recomeçar. Isso é tirar o melhor de todos os passageiros. Agradeço a Deus por todos que fazem parte dessa viagem e, por mais que os nossos assentos não estejam lado a lado, com certeza o vagão é o mesmo.
(André)
Iniciamos mais um ano na terra, um novo ciclo, e os boletos das passagens nos esperando. Nos reunimos no início de 2018 e falamos de músicas novas, mostrei algumas, conversamos, trocamos ideias e decidimos que tínhamos um novo disco de músicas inéditas para ser registrado. Mas não poderíamos nos dar o luxo de tirar um tempo para dedicar à produção do terceiro álbum. Decidimos fazer alguns show pontuais para quitar as dívidas e gravar o novo disco com recursos próprios. Seria um grande desafio.
Como um destino que volta pra me ensinar alguma coisa que eu ainda não aprendi, foi a vez do Rodrigo deixar a banda. E, como um karma, eu terei que enfrentar. Lembro e sei que ele precisou negar e lutar contra tudo e todos pra viver a Lítera. Reconheço sua luta, desejos, necessidades e obrigações. Foi o mais antigo companheiro. Não teríamos chegados aqui sem tudo que ele ajudou a construir, sem sua dedicação, esforço e entrega. É um grande músico, um grande ser humano, tem a minha admiração. Eu, como Lítera, farei com que tudo isso não tenha sido em vão.
Conversei com o James, ele sempre muito compreensivo e aberto a mudanças. Estamos crescendo juntos, aprendendo novos instrumentos, nos reinventando. Decidimos que o melhor é deixar o tempo passar, aliviar e com tranquilidade é que as novas ideias e oportunidades virão. Nunca foi fácil, a sensação de abandono é constante. As vezes me pergunto: Qual é o sentido desse caminho? O que ele espera de mim? O que eu espero dele? Entre os aventureiros de estação e os marinheiros de primeira viagem, quem sabe onde esse barco vai nos levar? O que é o ponto de partida, e pra onde estamos indo?
Sabendo que é depois de muitos erros que nos corrigimos e melhoramos, confio que o melhor está próximo. É fé, não sei explicar. No fundo, agradeço a todos que já foram meus companheiros de banda. Por navegarem comigo boa parte desse mar da vida. Mais um ciclo se encerrou, mas as nossas jornadas seguem.
“Ainda sou o mesmo só que diferente do que você conheceu”
(André)
Caso Real, reality show, Europa. Depois da saída do Thiago e do Lucas e da entrada do James, voltamos a ser um trio.
Tínhamos músicos para acompanhar a gente na trajetória. É aí que entra a figura do Fredi Bessa, um grande guitarrista e amigo, que tem sua carreira solo e acompanha outros artistas. Conheci o Fredi nos corredores da Marquise 51, com a sua banda de rock-jazz, o Sargento Malagueta. Estávamos completos, junto com o Fernando Spillari e o Juba Cardoso no violão e guitarra. Tínhamos os guerreiros, estávamos prontos pra batalha e essa formação alternava conforme o formato do show e a agenda dos músicos.
O lançamento do disco Caso Real foi um sucesso, com o Teatro do Sesc lotado em Porto Alegre. O disco saiu pelo selo Loop Discos e no show tivemos participações dos ex-integrantes da banda e amigos que ajudaram a construir a nossa carreira até então. Foi incrível. Reunimos pessoas de vários eixos da cultura naquela noite.
Foi o começo de um reconhecimento maior na cena underground do Brasil. Todas nossas músicas nos shows são cantadas a plenos pulmões pelo público e canções como “Mergulho”, “Bercy”, “Domitila” e “Amantes” viraram hits indie. Cena underground é muito curioso, pq em um lugar tu é muito conhecido e, em outros, ninguém faz a menor ideia de quem tu é.
Abrimos a Turnê Caso Real com o convite pra tocar no aniversário de 456 anos da cidade de São Paulo, no Solar da Marquesa. Fomos a primeira banda a fazer um show em um cemitério brasileiro, no Cemitério da Consolação, em São Paulo, onde está sepultada a Domitila. Recebemos muito apoio de fãs, amigos, muitas dessas coisas aconteceram depois que conhecemos o Paulo Rezzutti, um grande ser humano, autor dos livros sobre a Domitila e D. Pedro I. Tocamos em muitas cidades, gravamos o programa Showlivre, em que a gente sempre quis tocar. Foi incrível mesmo, mas o ano de 2016 prometia ainda muito mais.
Eu apresentava um programa web de receitas caseiras junto com meu amigo Adelino Bilhalva, o Cozinheiro Amador. Fomos parar em um reality show da TV Record, o Batalha dos Cozinheiros, apresentado pelo Cake Boss Buddy Valastro. Fiquei esperançoso, afinal, se conseguíssemos ficar no ar por um período, eu poderia tornar a Lítera mais conhecida, aumentaria o nosso alcance, estávamos feitos! Tratamos urgentemente de contratar uma assessoria de imprensa pra ajudar a potencializar nosso nome.
Fizemos um novo empréstimo, de 15 mil reais. Já estávamos devendo o disco, a prensagem do disco, nossas dívidas – só as desse período – já passavam de 50 mil reais. Ainda que tivéssemos bons shows, não estávamos ganhando o suficiente para pagar as contas e ter lucro. Muitos dos shows mal pagavam nossos custos, mas a gente entendia que estava em uma crescente. Era um investimento importante, precisávamos dar esse passo adiante.
O que parecia impossível, aconteceu: vencemos o programa que ficou mais de 3 meses no ar em rede nacional e distribuição mundial. Era surreal! Naquele período, junto com o Adelino, fiquei muito famoso e conhecido como “O melhor cozinheiro amador do Brasil”. Mas a Lítera, não.
A banda seguia no underground e ralando muito. Até consegui entrevistas como na revista Caras, onde eu sempre tentava falar da banda, mas parece que o público não tinha interesse de ouvir o que eu cantava. Se não fosse pra falar de comida ou do Buddy, não havia interesse da imprensa. Houve um momento de frustração, pois criei uma expectativa de que a banda ganharia mais notoriedade, o que acabou não acontecendo. Me senti um tanto mal, eu tinha prometido que daria essa alegria pra todos que tinham apostado na gente, mas não consegui. Usamos todo o prêmio pra pagar as dívidas, zeramos as mais antigas e seguimos com algumas mais recentes em aberto.
Eu andava nas ruas e as pessoas falavam comigo com se eu fosse o novo milionário. Como se a Lítera tivesse agora muito dinheiro, tivesse “bala na agulha”, mas isso não era verdade. A banda não teve nada de beneficio dessa fama midiática, e logo isso mexeu muito com a minha cabeça, foi uma pressão muito grande e eu não soube lidar. Essa tal fama traz muita gente bacana, mas também muitas pessoas mal intencionadas. De primeira a gente nunca sabe quem são.
No final daquele ano eu fiquei muito mal, tive uma depressão profunda, fiquei dois meses em casa sem sair pra quase nada. Tentei ao máximo manter as aparências. Uma pessoa muito importante nesse processo de manter os pés no chão e se preparar para o que viria de ruim com tudo isso, foi a Dedé Ribeiro. A experiência, delicadeza de observar atenta as nuances do mundo, me salvaram e comecei a me reconhecer.
Passada a febre, o sucesso relâmpago de uma celebridade instantânea de reality show, segui com a Lítera, como sempre foi. A frustração de não ter recebido atenção das pessoas quando tentei mostrar o que fazia meu coração bater, já estava mais resignada em mim.
No ano seguinte, mais um acontecimento surreal: recebemos um convite da Casa da Música da cidade do Porto, em Portugal, pra fechar o Festival de Verão daquele ano. Era a chave de ouro pra fechar nossa turnê. Se a banda começou por onde a Domitila viveu e morreu, encerrar onde D. Pedro I foi morrer, seria simplesmente incrível. Era um ciclo perfeito. Tínhamos ainda shows em Lisboa e na volta ao Brasil mais alguns compromissos no Rio Grande do Sul e São Paulo, mas consideraríamos esse show no Porto como um encerramento simbólico.
Tínhamos um cachê bem razoável pra fazer o show, em torno de 800 euros no Porto e mais 3 shows em Lisboa e Paris em que dependíamos da entrada de pagantes. Só que as passagens em alta temporada pra Europa estavam caríssimas, então fizemos um show em Porto Alegre pra arrecadar essa grana e, apesar dos esforços do nosso pequeno grande grupo de fãs, não conseguimos tudo o que precisávamos.
Tínhamos um custo total de passagens aéreas, hospedagens, deslocamentos internos e alimentação próximo a 40 mil reais, e conseguimos arrecadar 12 mil reais. Ficou muito em cima da hora para comprar as passagens, que foram 80% da receita. Ainda tinha a correria de tirar os passaportes, enfim… ir era importante, tudo poderia acontecer durante e depois dessa viagem.
Fomos com o dinheiro contadinho, cada dia era uma vitória, e deu tudo certo. Eu estava muito cansado e passei metade da gig com 12 aftas gigantes na boca. Mas os shows foram ótimos, éramos crianças. Mereciamos aquilo, depois de passar tudo que a gente tinha passado, era por direito aquela paisagem, tocar em lugares históricos e pra pessoas de outros idiomas, foi surreal, com toda certeza ainda não sabemos como mensurar o que foi tudo isso.
Era inevitável olhar pro Rio Douro e pro Rio Sena e não lembrar do Valão do Sarandi. “Olha onde a gente chegou.”
Caminhando numa tarde de outono em Porto Alegre, parei pra tomar café num lugar chamado Domitila, que já não existe mais. Lá, as pessoas eram recebidas com pétalas de rosas e lembro que tinha uma tortinha de banana com doce de leite que eu comia chorando. No cardápio estavam as cartas trocadas entre o imperador D. Pedro I e a Marquesa de Santos, a Domitila.
Aquela experiência era o que eu buscava e na semana seguinte escrevi a música que virou o nosso novo single “Domitila”. Lançamos em 2012 de forma colaborativa em um dos primeiros crowdfunding de Porto Alegre.
No ano seguinte, decidimos fazer um disco dividido em 3 partes, que fosse popular sem perder a nossa essência. Não tivemos dúvidas: o nome do produtor Marcelo Fruet era o mais certo para aquela obra e assim foi. Ele já tinha produzido Domitila, já existia química entre nós. Agora, era mão na massa! Começava ali uma nova grande etapa. Em seguida, gravamos o EP 1 A Marquesa e fizemos a primeira turnê em São Paulo e Minas Gerais, com shows em circuitos alternativos e pequenos festivais no interior dos estados. Foram 14 shows em um mês. Na volta, a banda já era outra. Um grande crescimento aconteceu. Na carreira, no pessoal e no público.
O momento exigia uma novidade, ser diferente. Lançamos o clipe de “Domitila” com uma estética inédita no Brasil, usando Tracking 3D e efeitos visuais e, ainda assim, falando de algo histórico. Começamos a ganhar mais notoriedade e era momento de experimentar, se desprender da formação clássica guitarra-baixo-bateria. Foi assim que o pianista Fernando Spillari se tornou o músico que acompanhava a banda em alguns shows.
Estava tudo dando certo! Até que, entrando pra gravação do EP 2 O Imperador, durante a produção, o Lucas anunciou sua saída. Ele precisava dedicar mais tempo à sua produtora de filmes. Ele faria o show de lançamento como despedida. O show foi no Teatro Renascença em Porto Alegre, casa cheia. Lindo e triste. Foi uma saída amigável, mas dolorosa. No tempo certo, pois tínhamos o substituto natural. O James era nosso fã, tinha feito a turnê do ano anterior com a gente e estava aguardando uma oportunidade.
Enquanto nos preparávamos para começar a produção do disco e finalizar a terceira parte da saga, mais um soco: o Thiago também anuncia sua saída. A Lítera novamente entrava no estúdio com um dos integrantes deixando o grupo. Como consolo, sua saída também foi amigável, mas muito dolorosa. Era um amigo de longa data que estava nos deixando. Perdi ali um grande companheiro de composição. Eu acho que no fundo eu entendia o pq dele ter saído, e não o culpava por isso. Já não tínhamos mais compatibilidade sonora e também era difícil ter um emprego formal, trabalhar na banda e suportar a pressão de família e amigos. Lógico que dói. Doeu, mas tinha que seguir. Tínhamos as músicas, era a reta final daquele projeto que estava bem sucedido. O melhor momento da banda, não poderíamos parar ali. E não paramos.
(André)
A vontade de sair do Sarandi era mesclada com o medo do que iríamos encontrar fora dali. No lançamento de Um Pouco de Cada Dia, passamos a fazer parte da produtora Marquise 51. Foi quando saímos da Zona Norte e fomos pro centro de Porto Alegre. Começamos então a ter um certo reconhecimento na cena. Pra gente, estar ali era incrível, todo o rock gaúcho circulava por lá. Ficamos muito amigos dos guris da banda Identidade e o guitarrista Lucas Hanke (também sócio e produtor da Marquise 51), era quem cuidava da gente e nos ajudou pra caramba.
A nossa primeira turnê, nossos primeiros shows fora de Porto Alegre, começaram ali, ainda em 2009. Naquele mesmo ano, em um show em Caxias, recebemos a notícia de que o pai do Thiago tinha falecido. Era o nosso primeiro grande show fora da nossa cidade, estávamos todos muito emocionados. Assim que o show terminou, recebi uma ligação da namorada dele na época avisando o que tinha acontecido. Fiquei com a missão de dar a notícia e organizar nossa volta o quanto antes. Mas decidi não falar nada. Avisei os outros guris da banda e pedi pra que fossemos embora logo pra casa. Pensei aquela noite inteira sobre a música “Saudade”, a que não consegui escrever uma letra e não sei porque sugeri esse nome… justo ela, que o Thiago tinha dito que fez pro pai dele. Mistérios da vida. Ou não.
No ano seguinte, fizemos uma mini turnê pelo Rio Grande do Sul como banda de abertura dos Faichecleres, uma banda clássica de rock gaúcho que estava fazendo essa turnê de possível retorno às atividades. As bandas não tinham nada um comum, mas foi ótimo. Fomos bem recebidos. Ainda que muitas vezes diante de um silêncio e com finais de canções sem aplausos do público, a gente se divertiu.
A banda sempre fazia um fã ou outro, mas era muito pouco pra conseguir se manter ou impressionar quem quer que fosse, seja imprensa ou produtores. Começou a se criar um mito nos bastidores de que éramos uma banda difícil de vender, por não se encaixar em um estilo. Diziam que éramos pop rock demais pra se encaixar no gênero “rock gaúcho”. Aí a produção da gente tentava vender pra casas de shows de pop rock, mas os contratantes nos achavam muito rock.
Em 27 de janeiro de 2013, a tragédia de Santa Maria na boate Kiss abalou o Brasil. Naquela noite, 242 jovens morreram. Muitos lugares fecharam as portas. Existia e ainda existe muita coisa errada nas casas de shows. Muita gente mal intencionada se aproveitou do momento. Todos sofremos, quem não tinha um amigo ou conhecido lá, era amigo ou parente de alguém que tinha. O que já estava difícil, ficou pior. Apenas os grandes bares e teatros se mantiveram. A máfia do alvará assombrava os pequenos lugares e fazia vistas grossas aos que tinham mais poder. Enquanto isso, os jovens e pais vivendo o luto. Não havia respeito nem consideração por parte de muitos órgãos públicos e privados.
Não tínhamos clima pra fazer shows e nem as pessoas de irem. As bandas undergrounds ainda em formação de público estavam numa encruzilhada. Claro que, com o tempo, as coisas foram voltando, mas muitas bandas acabaram nesse período. Das que começaram a cena junto com a Lítera, no final da década de 2000, quase nenhuma restou. As que vieram na geração anterior a nossa já tinham um certo público e seguiram por mais um tempo, mas também perderam a força. Faltava espaço para shows e, para um contratante se interessar por ti, a banda tinha que oferecer algo novo, muito além do show. O espetáculo tinha que ser uma experiência.
A tristeza era geral, precisávamos de músicas mais alegres, que ajudassem as pessoas – e a nós mesmos – a se sentirem mais felizes, a saírem daquele clima pesado que pairava na música e na vida noturna. E nós, que estávamos tentando ser mais rock, vimos de camarote a decadência desse estilo. Não sabíamos mais como soar nossas canções. Era hora de olhar pra dentro.
E se todo mundo perceber que eu sou uma farsa? Estávamos nos preparando para gravar nosso primeiro disco. Mas só tínhamos 1 música pronta. E que foi resgatada lá da época da Absolon: “Museu”, minha e do Rodrigo. Todas as outras músicas nascem do meu novo parceiro de composição, o Thiago. Ele tinha várias músicas sem letra, então foi muito fácil e rápido. Eu dizia que éramos Paul e Lennon do Sarandi (pelo menos era o que eu idealizava na minha cabeça).
Que ótimo, tínhamos 11 canções! Enfim, depois de muitos anos de espera, podemos gravar!
Com a nova formação sem baixista, Rodrigo e Thiago se revezavam nas gravações do baixo. A gravação dos instrumentos de cordas foram todas feitas no “home studio” que montamos na casa do Rodrigo, apenas a bateria e voz foram gravadas fora. Eu tive uma grande crise de ansiedade e depressão na fase da primeira gravação de voz. Tinha medo de não dar conta, tinha medo da crítica. Eram as primeiras vezes em que eu ouvia minha voz cantada gravada num som mais limpo, organizado… e não gostei do que ouvi (aliás, nunca gostei de me ouvir). As críticas ao meu vocal eram recorrentes nas primeiras audições. Sempre ouvia que a banda era boa, mas a voz deixava a desejar, faltava emoção, brilho… e afinação nem se fala.
Esse é um ponto importante de virada na minha vida: conheci o Iuri Sanson, vocalista da banda de metal Hibria. Era a melhor pessoa que eu poderia conhecer naquele momento. Um ser totalmente dedicado, simples, com uma linguagem clara, motivadora e de um talento excepcional. Virou um grande amigo e produtor vocal. Ajudou a desenvolver minha personalidade de voz, a me expressar e por pra fora tudo que estava preso. Era muito mais do que técnica, era emocional. Soube me preparar para o que estava por vir. Um cantor está sempre em desenvolvimento e aprimoração, mas sem essa base não sei dizer como estaria hoje. Ele me ensinou que cantar bonito muita gente canta, mas cantar com o coração são poucos.
Eu poderia ter desistido ali, cheguei a pensar nisso. Nada até então tinha me colocado tanto pavor como registar a minha voz pra sempre e todo mundo perceber que eu era uma farsa. Eu não era cantor. Fiquei seis meses me preparando com o Iuri, e ele me acompanhou como um irmão mais velho em todos os dias de gravação, me incentivou em cada nota boa. Foram incríveis todos os conselhos em forma de conversa nos intervalos, nas idas e nas vindas das gravações. Essa história merece um capítulo só pra ela, vou fazer isso um dia dando o devido mérito.
Prestes a lançar o disco, o Rodrigo conheceu o Lucas num site de bandas e ele entrou pra fazer um teste sem compromisso. Acabou ficando oficialmente e a banda volta a ser um quarteto com seu primeiro álbum independente gravado, o “Um pouco de cada dia”, em 2009. As letras foram todas escritas por mim, com exceção da música “Saudade”, canção instrumental do Thiago. Ele chegou a me dar ela pra escrever uma letra, falou que era uma canção pro pai dele, e tudo que eu fiz foi por o nome. Disse que ela já estava pronta, pra deixar assim. E assim ficou.
As letras do disco descrevem minha relação familiar, perda de amigos e um recém término de namoro que me levaram pra estatística da família – passei a tomar lithium diariamente. Não consegui escapar. O dia a dia daquelas relações e minhas músicas autobiográficas se transformaram em uma ideia conceitual com a ajuda dos guris. O disco abre com a frase “no fim do mês, conta comigo… ” e termina com “…pra ver brilhar o nosso lar”.
Foi um alívio e uma grande emoção quando saíram as primeiras críticas. Todas muito positivas. Com certeza o disco marcava o início de uma nova etapa. O álbum foi escolhido como “melhor lançamento de 2009” pela audiência do blog da RBS, afiliada da Globo aqui na região sul. Depois que gravei o disco, alguns medos foram amenizados, recebi muitos elogios sobre a minha voz. Mesmo assim não estava muito convencido, me preocupava mais com as críticas negativas do que com os aplausos. O que as pessoas mais falavam e elogiavam eram as letras. Todo o desdobramento do lançamento desse disco me marcou de um jeito permanente.
Somos a Lítera, o segundo e o terceiro recomeço. Depois que decidi sair da Absolon, essa nova banda, ainda sem nome definido, era eu na voz, Rodrigo na guitarra, Rafael no baixo e Gabriel na bateria.
Numa reunião pra discutir o nome da banda, sugeri “Lithium”, por causa da música do Nirvana e por ser uma medicação recorrente no meu ambiente familiar (que anos mais tarde eu também consumiria). A internet ainda estava dando seus primeiros passos, mas já foi o suficiente pro “Google da época” informar que existiam centenas de bandas cover de Nirvana com o mesmo nome. Ok, vamos pensar em outro. Durante esse período, fazíamos em média um ou dois shows por ano, tocando pra públicos muito pequenos. Dois shows foram cancelados por falta de público.
Assim as coisas foram indo, até que novamente a banda se classificou para o Festival do Colégio São Francisco. Era a chance de alguma virada! Na semana do evento, pra fazer a inscrição, decidimos que o nome seria Lítera, como derivação de Lithium e por ser algo próximo à palavra “literal”, de ser literalmente tudo ou nada. Parecia o nome perfeito. Somos a Lítera! Nessa mesma semana, surge um novo revés: o baterista Gabriel anuncia sua saída da banda. Ele tinha conseguido um emprego no estúdio “Nas Nuvens”, do produtor Liminha no Rio De Janeiro, e não teria mais como seguir com a gente. Era uma oportunidade irrecusável, a gente sabia disso, mas lembro que a notícia caiu como uma bomba. Estávamos felizes por ele, mas tristes por perder o baterista.
O Gabriel era o baterista perfeito, era sobrinho do Guedes, dono no estúdio onde aconteciam os ensaios e as sessões de pré-produção do disco que estava por vir. O jeito como ele tocava bateria era ótimo pra banda, pra sonoridade que a gente buscava, então não tínhamos ideia de como e onde iríamos conseguir um novo batera. Fizemos o show no festival, fomos capa do Diário Gaúcho, jornal de maior circulação nas regiões periféricas. No dia seguinte, a banda não tinha mais baterista e estava novamente sem rumo. O Sarandi não dispunha de um catálogo de bateristas.
Mesmo que parecesse difícil ou desconfortável na hora, precisávamos recomeçar pela segunda vez. A essa altura a gente não queria sofrer de novo procurando alguém que não estivesse com a mesma entrega, com vontade de viver da sua música. Foi aí que o Rodrigo, mesmo sendo o melhor guitarrista que já tinha passado pela banda, decidiu aprender a tocar bateria e assumir as baquetas. Em seguida, o baixista Rafael convidou um amigo de bairro, Thiago, que estava aprendendo a tocar guitarra, pra entrar na banda. A gente já conhecia ele e a escolha foi certeira.
Muita gente passou pela banda fazendo testes, até chegar na formação que parecia ideal: Rodrigo agora na bateria, Thiago na guitarra, Rafael no baixo, eu na voz e mais tarde voz e guitarra. Todos tinham uma ligação muito forte comigo: Rodrigo era casado com minha irmã, com quem já tinha um filho; Rafael era meu amigo, éramos fãs de punk rock e colegas no curso técnico de informática, na Escola Mesquita; e o Thiago tinha sido meu vizinho anos antes – na época, eu era amigo das irmãs do Thiago, tínhamos cinco anos de diferença. Eu era um adolescente com 15 anos e ele era uma criança voando de bicicleta pra cima e pra baixo com 10 anos. Acaso ou destino, a vida nos juntou novamente, eu na época com 23 e o Thiago com 18. E assim foi até as gravações do primeiro disco.
Parecia estar tudo bem, as coisas se encaminhando. Só que não. Tivemos uma nova baixa na banda: o Rafael, depois de uma discussão por email em que envolveu toda a banda, deixou a gente quando tínhamos três shows por fazer e um disco por gravar. Ninguém teve culpa, éramos jovens, pólvoras prontas pra estourar. Assuntos que hoje seriam facilmente contornados, mas na época não tínhamos maturidade pra resolver. Fim de mais um ciclo.
Às pressas, contamos com a ajuda de amigos pra terminarmos os compromissos. Voltamos a gravar e a Lítera se tornou pela primeira vez um trio. Eu até gostava da ideia. Nessa fase era fã de bandas que tinham power trio como formação, tipo o Green Day, que foi uma grande influência visual e estética para mim, que até hoje uso a correia da guitarra vermelha por causa do Billie Joe.
Absolon, o começo e o primeiro recomeço. Na época da Absolon, lembro que a gente só tinha 3 músicas. Mesmo assim a gente se encontrava todo final de semana pra ensaiar elas repetidamente.
No começo era na garagem do Álvaro, apenas com violões. Foi assim por muito tempo, depois começamos a revezar entre o estúdio Guedes no Sarandi e a garagem da casa da vó do Rodrigo no Humaitá, bairro industrial, afastado e meio deserto. Durante a semana o lugar era super agitado com o fluxo de funcionários das indústrias, já nos finais de semana não tinha uma viva alma. O silêncio no bairro era tamanho que quando um de nós chegava atrasado, ouvia da estação de trem o som da banda tocando a muitas quadras de distância.
Parecia impossível, mas conseguimos montar um repertório de músicas próprias com oito canções e uma versão para “Cartas aos missionários” da banda Uns e Outros. E assim fizemos o primeiro show num festival no Clube Comercial de Sapucaia, cidade satélite de Porto Alegre.
As músicas tinham nomes estranhos, nosso baixista insistia que tínhamos que ser uma banda “triste”, que o nosso som era deprê. Não sei da onde ele tirou isso, mas nosso repertório era: “Conspiração em segredo”, “Adolescente”, “Bungee Jump Presidente”, “A escuridão”, “Se eu fosse a verdade, não estaria mentindo”, “Museu de horror (Museu)”, “Esgoto”, “O Sol além do horizonte”. E covers: “Cartas aos Missionários”, dos Uns e Outros, e “Não Serve Pra Mim”, do Roberto Carlos.
Ainda assim, eu sentia que não era aquilo, não era a banda ideal pra dizer as coisas que eu precisava dizer. Não daquela maneira. A Absolon era pesada demais, o instrumental não dava espaço para as métricas, não eram canções feitas pro cantor, e sim para a banda tocar. Todo mundo tocava bem, menos eu. Ainda estava aprendendo a tocar as primeiras músicas.
Tocar violão me ajuda até hoje nas composições, então eu fazia o suficiente pra dar melodia no que eu queria e poder mostrar pros guris. Mas as minhas letras passavam por crises, eram pesadas e confusas, com metáforas complicadas demais e excessos de melancolia que nem sei se sentia tanto assim. Eu queria muitas vezes me parecer com os meus ídolos, copiava eles, ainda não tinha encontrado o meu método de escrever.
A banda começou a participar de festivais pela cidade e um deles foi tipo a nossa “consagração”, quando fomos premiados com o melhor instrumental do evento com a música “Conspiração em Segredo”, no Festival de Música do Colégio São Francisco. Foi a primeira vez que tocamos pra um grande público e então a zona norte da cidade ficou sabendo que a gente existia. Pelos menos era o que a gente gostava de pensar.
Mas lá dentro alguma coisa gritava que eu precisava virar a chave. Então, depois do Festival de Música de Porto Alegre, em que tocamos pra quase 5 mil pessoas, decidi sair da banda. Montei um outro grupo. Senti a necessidade de ter mais liberdade pra fazer rock com poesia, como fazia o The Doors, banda do Jim Morrison, do qual tinha me tornado muito fã. Queria compor e tocar músicas sem gênero, sem compromisso com um estilo, mas com atitude rock. Esse era o início do meu primeiro recomeço.
Como o Raça Negra me transformou em roqueiro.
Lembro que foi no calor abafado de Porto Alegre, num fim de tarde, depois de um dia de trabalho na oficina, que encontrei com o Rodrigo Bonjour na casa do meu vô. Ele tava na varanda da casa dos meus pais, tinha recentemente começado a namorar a minha irmã. Fiquei sabendo que ele tocava muito bem guitarra. Foi ali que tive a sacada e enxerguei a oportunidade de montar uma banda. Tive que mentir que sabia cantar e que já tinha algumas músicas feitas pra poder convidar ele. Na verdade, eu nunca tinha cantado, nem tinha músicas, mas tinha alguns poemas que sabia que poderiam ser musicados por alguém que já soubesse tocar.
Eu também passei pelo clássico momento de pensar “já é muito tarde pra eu começar”. Mas, por persistência ou teimosia, aos 17 anos comecei a tocar violão. Era considerado bem tarde pra época. Nessa idade, todos os meus ídolos já tinham suas carreiras de sucesso e sempre acompanhava o fator “nasceu pra isso, toca desde os 10 anos de idade”, como se fossem realmente predestinados para aquilo. Eu precisava correr, o tempo me esmagava. Percebi que, pra ter alguma chance, tinha que buscar todos os anos de predestinação que não tinham acontecidos comigo.
Eu queria fazer uma banda de música autoral, falar das coisas que sentia, mas não sabia como dizer. Lá no Sarandi, éramos na maioria filhos de proletários, de pais que sustentaram suas famílias com muita dificuldade. Tínhamos acesso a certas coisas, o básico. Não passei fome, mas cheguei a dormir algumas noites sem janta. Era uma vida sem muita diversão e com muita culpa. Fazer qualquer coisa ligada à arte era visto como hobby e, caso a gente insistisse nisso, era “coisa de vagabundo”. O Brasil estava recém saindo de uma grave situação econômica, de Sarney e Collor. Eram muito presentes a frustração e o medo de ter uma vida igual a dos nossos pais.
O som da primeira formação, ainda uma banda sem nome, era pesado, com muita distorção, letras confusas, berros desafinados e eu em alguns momentos tentando imitar o Jim Morrison. Era tudo muito ruim e misturado, como uma criança recém nascida que tem cara de joelho.
Eu ficava tentando colocar dentro da minha arte algo diferente, como as bandas de pagodes do anos 90 faziam. A minha favorita era o Raça Negra, que foi a primeira a regravar sucessos do rock brasileiro, “Pro dia nascer feliz” do Cazuza e “Será” da Legião Urbana. Achava essas misturas de gêneros algo muito rico e que seria a música brasileira do futuro. A vida foi andando e no álbum “Caso Real” em 2015, fizemos a regravação da música “Amantes”, do José Augusto, que fez sucesso com a banda de axé Araketu no início dos anos 2000.
A banda teve alguns nomes antes, “Marreta Biônica” (homenagem ao personagem mexicano Chapolin Colorado) foi o primeiro e não chegamos a fazer show com esse nome. Não pegou, então mudamos pra “Absolon” (significa: senhor da paz), que fazia referência ao filme do mesmo nome. A banda era eu na voz, Rodrigo na guitarra, Felipe na guitarra solo, Álvaro no baixo e Daniel na bateria. Os grandes requisitos pra entrar na banda eram não usar drogas, gostar de Raça Negra e, como dizia o Tim Maia, estar “no caminho do bem”. Não precisava ser um grande músico, bastava gostar de refri, xis e pastel.