Uma estação no inferno de Artur Rimbaud (Livro Completo)
Uma estação no inferno, ou Uma temporada no inferno (Une Saison en enfer) de Artur Rimbaud, é o relato em prosa poética do homem perscrutando as suas profundezas e origens. Os textos deste livro visitam sonhos e terras distantes, desejo de solidão e sede de conhecimento, o passado ancestral e a busca pelo desconhecido.
Boa leitura!
Uma estação no inferno.
de Artur Rimbaud.
Antigamente, se bem me lembro, minha vida era um festim no qual todos os corações exultavam, no qual corriam todos os vinhos. Uma noite, sentei a Beleza em meus joelhos. – E achei-a amarga. – E injuriei-a. Armei-me contra a justiça.
Fugi. Ó feiticeiras. ó miséria, ó ódio, a vós é que foi confiado o meu tesouro!
Tudo fiz para que se desvanecesse em meu espírito a esperança humana. Como um animal feroz, investi cegamente contra a alegria para estrangulá-la, conjurei os verdugos para morder, na minha agonia, a culatra de seus fuzis.
Conjurei as pragas, para afogar-me na areia, no sangue. Fiz da desgraça a minha divindade. Refocilei na lama. Enxuguei-me ao ar do crime. E preguei boas peças à loucura.
E a primavera trouxe-me o horrível gargalhar do idiota. Ora, por último, chegando a ponto de quase fazer o trejeito final, sonhei encontrar a chave do
festim antigo, no qual talvez recobraria o apetite.
A caridade é essa chave. – Esta inspiração prova que tenho sonhado!
“Sempre serás hiena, etc…” exclama o demônio que me coroou de tão amáveis papoulas. “Vence a morte com todos os teus apetites, com todo o teu egoísmo e todos os pecados capitais”.
Ah! estou farto de tudo isso: – Mas, querido Satã, eu te conjuro a que não me fites com pupila tão irritada! e à espera das pequenas covardias atrasadas, para vós outros que admirais no escritor a ausência das faculdades descritivas ou pedagógicas, para vós arranco algumas hediondas páginas do meu caderno de condenado.
Mau Sangue
Herdo de meus antepassados, os gauleses, os olhos azuis-claros, a fronte estreita, e a falta de jeito para a luta. Sinto que minhas roupas são tão bárbaras quanto as deles. Apenas não unto a cabeleira.
Os Gauleses foram esfoladores de animais, queimadores de ervas, os mais inábeis de seu tempo.
Deles, eu herdo: a idolatria e o amor ao sacrilégio; – oh! todos os vícios: cólera, luxúria, – magnífica, a luxúria; – sobretudo mentira e preguiça.
Detesto todas as profissões. Mestres e oficiais, todos campônios, ignaros. A mão que empunha a pena equivale à que guia o arado. – Que século de mãos! – Jamais me servirei das mãos! Depois, a domesticidade leva demasiado longe. A honradez da mendicidade exaspera-me. Os criminosos repugnam-me como castrados: quanto a mim, estou intacto, e pouco se me dá.
Mas quem fez tão pérfida a minha língua que, até agora, tem guiado e protegido a minha preguiça? Sem saber utilizar-me do corpo, e mais ocioso que um sapo, tenho vivido por toda a parte. Não há família na Europa que eu não conheça: – Estou falando de famílias iguais à minha, que devem tudo à declaração dos Direitos do Homem – Tenho conhecido cada filho-família!
***
Se possuísse antecedentes em um ponto qualquer da história de França!
Mas não, nada.
Não ignoro que fui sempre de raça inferior. Não posso compreender a revolta. Minha raça só se rebelará para saquear: como os lobos ao animal que não mataram.
Recordo a história de França, filha primogênita da Igreja. Aldeão, teria empreendido viagem à Terra Santa; vejo em pensamento caminhos nas planícies suábias, panoramas de Bizâncio, muralhas de Jerusalém: o culto de Maria, o enternecimento para com o crucificado despertam em mim entre mil fantasias profanas. – Estou sentado, leproso, sobre cacos de vasos e urtigas, junto a um muro roído pelo sol. – Mais tarde, lansquenete, bivacaria sob as noites de Alemanha.
Ah! mais ainda: danço o sabá numa incendiada clareira, com velhas e crianças.
Minhas lembranças detêm-se nessa terra e no cristianismo. Ver-meei sempre nesse passado. Mas sempre sozinho; sem família; e, além disso, que língua falarei? jamais me surpreendo nos concílios de Cristo ou nos concílios dos Senhores, – representantes de Cristo.
Que era eu no século passado: só hoje torno a encontrar-me.
Acabaram-se os vagabundos, nada de guerras sem sentido. A raça inferior cobriu tudo – o povo, como se diz, a razão; a nação, e a ciência.
Oh! A ciência! Tudo se repete. Para o corpo e para a alma, – o viático – temos a medicina e a filosofia, – os remédios das boas mulheres e as canções populares apropriadas. E as distrações dos príncipes e os jogos que eles interditam! Geografia, cosmografia, mecânica, química …
A ciência, a nova nobreza! O progresso. O mundo marcha. Por que não havia de girar?
É a visão dos números. Vamos pata o Espírito. É certíssimo, este oráculo, que eu faço. Compreendo, e não sabendo explicar-me sem palavras pagãs, preferiria silenciar.
***
Retorna o sangue pagão! O Espírito está próximo; por que Cristo não me ajuda, dando à minha alma nobreza e liberdade? Ai, o Evangelho morreu. O Evangelho! O Evangelho.
Espero Deus avidamente. Sou de raça inferior por toda a eternidade.
Estou na praia armoricana. Que as cidades se iluminem à noite.
Minha jornada está realizada; abandono a Europa. A aragem marinha queimar-me-á os pulmões; os climas perdidos tostar-me-ão.
Nadar, mordiscar ervas, caçar, fumar, sobretudo; beber licores fortes como chumbo derretido, – qual faziam esses queridos antepassados em volta do fogo Retornarei com membros de aço, negra a epiderme, as pupilas acesas: por minha máscara julgar-me-ão de um raça forte. Possuirei ouro: serei ocioso e brutal. As mulheres cuidam destes ferozes enfermos que regressam dos países quentes. Participarei dos negócios políticos. Salvo.
Agora estou amaldiçoado, horroriza-me a pátria. O melhor é um sono, completamente bêbado, na praia.
***
Ninguém parte. – Percorramos novamente os caminhos daqui, carregado de meu vício que aprofundou sua raízes de sofrimento a meu lado, desde a idade da razão, – que sobe ao céu, me golpeia, derruba, arrasta.
A derradeira inocência e a derradeira timidez. Está dito. Não entregar ao mundo meus desgostos e minhas traições.
Vamos! A marcha, o fardo, o deserto, o tédio e a cólera. A quem me alugar? Que besta é preciso adorar? Que santa imagem atacar? Que corações destruirei? Que mentira devo sustentar? Sobre que sangue caminhar?
Mas, é melhor evitar a justiça. – A vida dura, o simples embrutecimento, – levantar, o punho seco, a tampa do caixão, sentar-se, afogar. Assim desaparecem a velhice e os perigos: o terror não é francês.
Ah! Sinto-me tão abandonado que estou oferecendo a qualquer divina imagem – impulsos para a perfeição.
Ó minha abnegação, ó maravilhosa caridade! aqui em baixo, embora!
De profundis, Domine, que estúpido sou!
***
Menino, eu admirava o presidiário intratável sobre quem se fecha sempre a porta da prisão; visitava os albergues e as pousadas que ele havia santificado com sua passagem; via com sua idéia o céu azul e o trabalho florido do campo; pressentia sua fatalidade nas cidades.
Era mais forte que um santo, tinha mais bom-senso que um viajante, – e ele, só ele! Como testemunho de sua glória e de sua razão.
Nas estradas, nas noites de inverno, sem teto, sem roupa, sem pão, uma voz oprimia meu coração gelado: “Fraqueza ou força: repara, é a força. Não sabes para onde vais, nem porque vais, entra por toda a parte, responde a tudo. Não lograrão matar-te a menos que já sejas um cadáver”. Pela manhã tinha o olhar tão perdido e o aspecto tão morto, que aqueles que me encontravam possivelmente não me viam.
Nas cidades, a lama parecia-me de súbito vermelha e negra, como um espelho quando a lâmpada circula na peça contígua, como um tesouro na floresta! Boa sorte, exclamava eu, e via um mar de labaredas e fumaça no céu, e, à esquerda, à direita, todas as riquezas ardendo como um milhar de relâmpagos.
Mas a orgia e a camaradagem das mulheres me estavam proibidas.
Nem ao menos um companheiro. Via-me diante de uma multidão exasperada, em frente ao pelotão de fuzilamento, chorando a desgraça de que não houvessem podido compreender, e perdoando!
– Como Joana d’Arc! – “Sacerdotes, professores, mestres, vós vos enganais entregando-me à Justiça. Jamais pertenci a este povo daqui de baixo; jamais fui cristão; eu pertenço à raça que cantava no suplício; não compreendo as leis; não tenho senso moral; sou um bruto: vós vos enganais”.
Sim, tenho os olhos cerrados para a vossa luz. Sou uma, um negro.
Contudo posso salvar-me. Vós sois falsos negros; vós, maníacos, ferozes, avarentos. Mercador, tu és negro; magistrado, tu és negro;
general, tu és negro; imperador, velho prurido, tu és negro; tu bebeste um licor não selado, da fábrica de Satã. – Este povo está inspirado pela febre e pelo câncer. Mutilados e velhos são de tal modo respeitáveis que pedem que os cozinhem. – O mais sábio é abandonar este continente, onde ronda a loucura para prover de reféns estes miseráveis. Entro no verdadeiro reino dos filhos de Can.
Conheço ao menos a natureza? Conheço-me a mim próprio? – Basta de palavras. Sepulto os mortos em meu ventre. Gritos, tambor, dança, dança, dança, dança! Nem sequer considero que ao desembarcarem os brancos, cairei no nada.
Fome sede, grito, dança, dança, dança, dança!
***
Os brancos desembarcam. O canhão! É preciso submeter-se ao batismo, vestir-se, trabalhar.
Recebi no coração o toque da graça. Ah! Não o havia previsto!
Nunca pratiquei o mal. Os dias vão ser suaves, apagar-se-me-á o remorso. Não terei suportado os tormentos da alma quase morta para o bem, onde sobe a luz severa como os círios fúnebres. A sorte do filho-família, esquife prematuro coberto de límpidas lágrimas. Certo, a libertinagem é estúpida, o vício é estúpido; é preciso arrojar distante a podridão. Mas o relógio nunca dará unicamente as horas de dor! Vou ser raptado qual uma criança, para brincar no paraíso, esquecido de todas as desgraças?
Depressa! há outras vidas? – O sono em meio às riquezas é impossível. A riqueza foi sempre bem público. Só o amor divino outorga as chaves da ciência. Vejo que a natureza não é senão um espetáculo de bondade. Adeus quimeras, ideais, erros!
O canto razoável dos amigos eleva-se do navio salvador: é o amor divino. – Dois amores! Posso morrer de amor terrestre, morrer de sacrifício. Deixei almas cuja pena crescerá com minha partida!
Escolheste-me entre náufragos; os que ficam são meus amigos?
Salvei-os!
Despertou-me a razão. O mundo é bom. Abençoarei a vida. Amarei meus irmãos. Não são promessas infantis. Nem esperança de escapar à velhice e à morte. Deus me dá força e eu louvo a Deus.
***
O tédio já não é o meu amor. As cóleras, a libertinagem, a loucura, – dos quais conheço todos os impulsos e todas as conseqüências – todo o meu fardo está deposto. Apreciemos sem vertigem a extensão de minha inocência.
Já não serei capaz de implorar o consolo de uma bastonada. Não me acredito a caminha de umas núpcias com Jesus Cristo por sogro.
Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus. Quero a liberdade na salvação: como alcançá-la? Os gostos fúteis abandonaram-me. Já não preciso de sacrifícios nem de amor divino. Não tenho saudades do século dos corações sensíveis. Cada um tem sua razão, desprezo e caridade: retenho meu lugar no alto desta angélica escala de bomsenso.
Quanto à felicidade estabelecida, doméstica ou não… não, não posso. Estou demasiado gasto, demasiado débil. A vida floresce pelo trabalho, velha verdade: quanto a mim, minha vida não é suficientemente pesada, voa e flutua distante, por cima da ação, esse adorado eixo do mundo.
Como me sinto solteirona, falto de coragem para amar a morte.
Se Deus me concedesse a calma celeste, aérea, a oração, – como os antigos santos -. Os santos! os fortes! os anacoretas, os artistas tais quais já não precisamos.
Farsa contínua.! Minha inocência me faria chorar. A vida é a farsa que todos têm que representar.
***
Basta! eis a punição. – Em marcha!
Ah! queimam os pulmões, latejam as têmporas! A noite tomba em meus olhos, em pleno sol! O coração… os membros…
Aonde vamos? ao combate? Sou fraco! os outros avançam. Os ferros, as armas… o tempo!
Fogo! Fogo sobre mim! Lá! para onde me dirijo. – Covardes – Matome! Arrojo-me entre as patas dos cavalos!
– Habituar-me-ei a isso.
Esta seria a vida francesa, o caminho da honra!
Noite de Inferno
Bebi um grande gole de veneno. – Três vezes bem-dito o conselho que até mim chegou! Abrasam-se-me as entranhas. A violência do veneno convulsiona-me os membros, desfigura-me, atira-me ao solo.
Morro de sede, sufoco, não posso gritar. É o inferno, a condenação eterna! Olhai como o fogo cresce. Queimo como devo queimar! Sai, demônio!
Havia entrevisto a conversão ao bem e à felicidade, a salvação.
Posso descrever a visão? O ar do inferno não tolera hinos! Eram milhões de criaturas encantadoras, um suave concerto espiritual, a força e a paz, as nobres ambições, que sei eu?
As nobres ambições!
E é ainda a vida! – Se a condenação é eterna! Um homem que quer mutilar-se está condenado, não é assim? Acredito-me no inferno, logo estou nele. É o cumprimento do catecismo. Sou escravo de meu batismo. Pais, fizestes a minha desgraça e a vossa! Pobre inocente! – O inferno nada pode contra os pagãos. – É a vida. Mais tarde, as delícias da condenação serão mais profundas. Um crime, depressa, que as leis humanas me precipitem no nada.
Cala-te, mas cala-te!… Esta é a vergonha, esta a repreensão: Satã que diz que o fogo é ignóbil, que minha cólera é terrivelmente louca. – Chega!… Segredam-me erros, magias, falsos perfumes, músicas pueris. – E dizer-se que possuo a verdade, que vejo a justiça: tenho um juízo são e firme, estou pronto para a perfeição… Orgulho. – Seca-me a pele da cabeça. Piedade! Senhor, eu tenho medo. Tenho sede, tanta sede! Ah! a infância, a erva, a chuva, o lago sobre as pedras, a claridade da lua quando o campanário tocava meia-noite…
O diabo está no campanário, a esta hora. Maria! Virgem Santa!…
– Horror de minha idiotice.
Lá longe, não há almas honestas que me desejem o bem?
… Vinde…
Tenho um travesseiro sobre a boca, não me ouvem, são fantasmas.
Além disso, que ninguém se aproxime. Cheiro a queimado, é certo.
As alucinações são inumeráveis. É a que sempre tive: nenhuma fé na história, esquecimento dos princípios. Calar-me-ei; poetas e visionários sentiriam ciúmes. Sou mil vezes mais rico, sejamos avaros como o mar.
Ah! o relógio da vida parou neste instante. Já não estou no mundo. – A teologia é séria, o inferno está sem dúvida em baixo – e o céu no alto. – Êxtase, pesadelo, sonho em meio a um ninho de labaredas.
Quanta malícia na atenção no campo… Satã, Ferdinando, corre com os grãos selvagens… Jesus caminha sobre sarças ardentes, sem dobrá-las… Jesus caminhava sobre as águas revoltas. A lanterna nolo mostrou de pé, branco e as tranças negras, sobre uma onda de esmeralda…
Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais, morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, o nada.
Sou mestre em fantasmagorias.
Escutai!
Possuo todos os talentos. – Aqui não há nada e há alguém: não quisera desperdiçar o meu tesouro. – Desejais que eu desapareça, que
mergulhe à procura do anel? Desejais? Fabricarei ouro, remédios.
Confiai em mim, a fé conforta, guia, cura. Vinde todos, – até as criancinhas, – para que vos console, para que vos prodigue o seu coração. – O coração maravilhoso! – Pobres homens, trabalhadores!
Não peço. orações; serei feliz apenas com vossa confiança.
– E pensemos em mim. Isto me faz ter raras saudades do mundo.
Minha vida foi somente doces loucuras, é lamentável.
Bah! façamos todas as caretas imagináveis.
Decididamente, estamos fora do mundo. Já não há ruídos. Desapareceu-me o tato. Ah! meu castelo, minha Saxônia, meu bosque de salgueiros. As tardes, as manhãs, as noites, os dias…
Estou exausto!
Deveria ter o meu inferno pela cólera, meu inferno pelo orgulho, – e o inferno da preguiça; um concerto de infernos.
Morro. de cansaço. É o túmulo, vou para os vermes, horror de horrores! Satã, farsante, queres disso1ver-me com teus feitiços?
Exijo. Exijo! um golpe de tridente, uma gota de fogo.
Ah, sair de novo para a vida! Contemplar nossos aleijões! E esse veneno, esse beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo! Deus meu, piedade, esconde-me, estou doente! – Estou escondido e ao mesmo tempo não o estou.
É o fogo que se 1evanta com o seu condenado.
Delírios
I
Virgem louca
O esposo infernal
Ouçamos a confissão de um Companheiro do inferno:
“Ó divino Esposo, meu Senhor, não repilas a confissão da mais triste de tuas servas. Estou perdida. Estou bêbada. Estou impura. Que vida!”
“Perdão, divino Senhor, perdão! Ah! perdão! Quantas lágrimas! E quantas lágrimas ainda espero!”
“Mais tarde, conhecerei o divino Esposo!
Nasci submissa a Ele! – O outro pode bater-me agora!”
“No momento, estou no fundo do mundo, ó minhas amigas!.. não, não sois minhas amigas… Jamais delírios nem torturas semelhantes…
É idiota:”
“Ah! sofro, grito. Sofro de verdade. Porém tudo me é permitido, carregada de desprezo dos mais desprezíveis corações”.
“Enfim, façamos esta confidência, com a reserva de repeti-la vinte vezes ainda, – tão morta, tão insignificante!”
“Sou escrava do Esposo infernal, aquele que perdeu as virgens loucas. É esse demônio mesmo. Não é um espectro, não é um fantasma, Mas a mim, que perdi a sabedoria, que estou condenada e morta no mundo, – não me matarão! Como vo-lo descrever! Já nem mesmo sei falar. Estou de luto, choro, tenho medo. Um pouco de ar, Senhor, se assim o desejas!”
“Estou viúva…- Estava viúva…- Sim, fui muito honesta antigamente e não nasci para tornar-me esqueleto!…
– Ele era quase uma criança… Seduziram-me as suas misteriosas delicadezas. Esqueci todo o meu dever humano para segui-lo. Que vida! A verdadeira
vida está ausente. Não estamos no mundo. Vou aonde vai ele, é preciso. E com freqüência ele se encoleriza contra mim, contra mim, a pobre alma. O Demônio! – É um demônio, vós o sabeis, não é um homem”.
“Ele diz: “Não amo as mulheres: sabemos que o amor está por ser reinventado. Já não podem desejar senão uma posição segura.
Alcançada, o coração e a beleza são postos à margem: não resta senão álgido desdém, o alimento do casamento, hoje, Ou então vejo mulheres, com os sinais da felicidade, mulheres das quais eu poderia fazer boas amigas, devoradas por brutos desde o primeiro momento sensíveis como fogueiras”
“Ouço-o fazer da infâmia uma glória, da crueldade um encanto”. Eu sou da raça antiga: meus pais eram escandinavos: traspassavam-se as costelas, bebiam o próprio sangue. – Ferirei todo o meu corpo, tatuar-me-ei, quero ser horrível como um mongol: verás, urrarei em plena rua. Quero ficar louco de raiva. Nunca me mostres jóias: arrastar-me-ia e me contorceria sobre a relva. Minha riqueza, quisera-a toda enodoada de sangue. Nunca hei de trabalhar…” Certas noites, seu demônio apoderando-se de mim, nós rodávamos, eu lutava com ele! – Às noites, freqüentemente bêbado, escondia-se nas ruas ou nas casas para assustar-me mortalmente. – “Cortar-me-ão na verdade o pescoço; será asqueroso”. Oh! esses dias em que ele quer caminhar com aspecto de crime!”
“Algumas vezes fala, numa espécie de patoá enternecido que traz o arrependimento, dos infelizes que certamente existem, dos trabalhos
penosos, das partidas que despedaçam os corações. Nas tascas em que nos embriagávamos, punha-se a chorar ao pensar nos que nos rodeiam, rebanho da miséria. Erguia os bêbados nas negras ruas.
Tinha piedade de uma mãe perversa para com os filhinhos.
– Portava-se com uma graça de menina, a caminho do catecismo.
– Afetava tudo saber: comércio, arte, medicina.
– Eu o seguia, era preciso!
“Eu via toda a decoração de que, em espírito, ele se rodeava; vestidos, panos, móveis: eu lhe emprestava armas, outro rosto. Eu via tudo o que lhe interessava, como ele quisera criá-lo para si próprio. Quando me parecia que seu espírito estava inerte, eu o acompanha, por mim mesmo, em ações estranhas e complicadas, longe, boas ou más: estava perfeitamente segura de que nunca penetraria em seus mundo. Ao lado de seu corpo amado adormecido, quantas horas da noite não velei, perguntando-me porque tanto porfiava ele em evadir-se da realidade. Jamais homem algum fez tal
voto. Advertia-me, – sem temer por ele – de que bem podia ser um grave perigo para a sociedade.
– Acaso possuirá segredos para transformar a vida? Não, não faz mais que procurá-los, respondia a mim mesmo. Sua caridade está enfeitiçada e retém-me prisioneira.
Nenhuma outra alma a não ser a minha teria bastante força – força de desespero! – para suportá-la, para ser protegida e amada por ele.
Além disso, não o imaginava com outra alma: vê-se seu Anjo, nunca o Anjo de nenhum outro, creio eu. Eu habitava em sua alma como em um palácio que se desocupou para não se ver nele uma pessoa menos nobre que vós: eis tudo. Ai! eu dependia por completo dele.
Mas, que queria ele de minha existência opaca e covarde? Não me tornava melhor, se não me fazia morrer! Tristemente despeitada, eu lhe disse algumas vezes:
“Compreendo-te”. Ele dava de ombros.”Assim, como renovasse sem cessar meu sofrimento, e sentindo-me a meus próprios olhos ainda mais perdida, – como diante de todos os olhos que quisessem contemplar-me se não estivesse condenada para sempre ao esquecimento de todos – aumentava cada vez mais minha fome de sua bondade. Seus beijos e abraços eram um céu, um sombrio céu no qual eu entrava, e no qual desejaria que me
abandonasse, pobre, surda, muda, cega. Eu começava a habituar-me.
Considerava que éramos duas crianças boas; livres para passear no Paraíso da tristeza. Compreendíamo-nos. Comovidos, trabalhávamos juntos. Mas, após uma penetrante carícia, ele observava: Quando eu me for, que estranho te parecerá tudo porque tens passado. Quando já não tenhas meus braços em torno de teu pescoço, mas meu coração para reclinar-te, nem esta boca sobre teus olhos. Porque um dia terei que partir para muito longe. Além disso, tenho que ajudar a outros: é meu dever. Ainda que isso não seja lá muito agradável…amada criatura”. Imediatamente eu o imaginava distante, e me sentia presa de vertigem, relegada à mais espantosa das sombras: a morte.
Obrigava-o prometer que não me abandonaria. Vinte vezes me fez essa promessa de amante. Era tão frívolo quanto eu, quando lhe dizia:
“Compreendo-te”.
“Ah! Jamais tive ciúmes dele. Não me abandonarás, creio. Que faria? Não possui conhecimentos, nunca trabalhará. Quer viver onâmbulo. Bastaria a sua bondade e caridade para dar-lhe direito no mundo real? Por um instante, esqueço o estado lastimoso em que caí: ele far-me-á forte, viajaremos, caçaremos nos desertos, dormiremos sobre o empedrado de cidades desconhecidas, sem auxílios, sem queixa. Ou ao despertar, as leis e os costumes terão mudado, – graças a seu mágico poder; ou o mundo, permanecendo igual, abandonar-me-á a meus desejos, a minhas alegrias, a minhas indolências.
Oh! Dar-me-ás a vida de aventuras que existe nos livros infantis a fim de me recompensar de quanto tenho sofrido? Não posso. Ignoro meu ideal. Declara-me que sente remorsos, que tem esperanças: isto não deve importar-me. Fala com Deus? Talvez devesse eu mesma dirigir-me a Deus. Estou no mais profundo abismo, e não sei mais rezar”.
“Se me explicasse suas tristezas, compreende-las-ia melhor que suas zombarias? Ele me ataca, durante horas a fio me humilha por tudo que me tem comovido no mundo, e fica furioso se me ponho a chorar”.
“- Estás vendo este elegante jovem que entra numa bela e tranquila residência? Chama-se Duval, Dufor, Armando, Maurício, que sei eu? Uma mulher decidiu-se a amar este perverso idiota: está morta; certo é agora uma santa, no céu. Causarás a minha morte como ele causou a dessa mulher. É nosso destino, o dos corações caridosos…”
Ai! dias havia em que os homens afiguravam-se-lhe joguetes de delírios grotescos; punham-se a rir horrivelmente, por muito tempo.
– Depois recuperava seus modos de jovem mãe, de irmã mais velha.
Se fosse menos selvagem, estaríamos salvos! Mas também sua doçura é mortal. Estou submetida a ele. – Ah! Estou louca!”.
“Um dia, talvez, desaparecerá maravilhosamente; mas preciso saber se voará para algum céu, para que eu veja, ainda que por um pouco, a assunção de meu amiguinho”.
Que casal risível!
Delírios
II
Alquimia do Verbo
Para mim. A história de uma de minhas loucuras.
De há muito, eu me vangloriava de possuir todas as paisagens possíveis, e achava irrisórias as celebridades da pintura e da poesia modernas.
Extasiava-me diante de pinturas idiotas; portais, decorações. telas de saltimbancos, desenhos, estampas populares; literatura fora de moda, latim de igreja, livros eróticos sem ortografia, romances de nossos avós, contos de fadas, livros infantis, velhas óperas, ditados tolos, ritmos ingênuos.
Sonhava cruzadas, viagens de descobertas, das quais não existem noticias, repúblicas sem história, guerras de religião sufocadas, revolução de costumes, deslocamento de raças e continentes: acreditava em tudo quanto era encantamento.
Inventei a cor das vogais! – A negro, E branco, I vermelho, O azul, U verde. – Regulei a forma e o movimento de cada consoante, e me vangloriei de inventar, com ritmos instintivos, um verbo poético acessível, algum dia, a todos os sentidos. Eu me reservava a sua tradução.
De início foi apenas um estudo. Escrevia os silêncios, as noites; anotava o inexprimível. Fixava as vertigens.
***
Longe dos pássaros, dos rebanhos, dos camponeses, que bebia eu, joelhos em terra, naquela mata rodeada de ternos bosques de aveleiras, numa tênue e verde bruma, ao meio-dia?
Que podia beber neste jovem Oise, olmos sem voz, relva sem flores, céu aberto!
Que podia beber nessas amareladas cabaças, longeo de minha choupana querida? Um licor de ouro que faz transpirar?
Eu era como um torpe emblema de hospedaria.
Uma tempestade desterrou o céu. Dentro da noite A água dos bosques perdia-se entre as areias virgens, O vento de Deus lançava pedras de gelo sobre os charcos; Soluçando, eu contemplava ouro – e não pude beber.
***
Às quatro da manhã, no verão, o amoroso cansaço dura ainda. Sob os pequenos bosques se evola, o perfume da noite de festa.
Ao longe, na ampla oficina, ao sol das Hespérides. Já se agitam – em mangas de camisa – Os Carpinteiros.
Em seus Desertos de musgo, tranqüilos, trabalham preciosos lambris, nos quais a cidade.
Pintará falsos céus.
Oh, por estes Obreiros, encantadores súditos de um rei da Babilônia, abandona um instante, ó Vênus, os Amantes de alma coroada!
Ó Rainha dos Pastores, leva aos trabalhadores a aguardente que lhes retempere as forças.
***
A velha poesia tinha boa parte na minha alquimia do verbo. Habituei-me à alucinação simples: via com toda a sinceridade uma mesquita em lugar de uma fábrica, uma escola d tambores com anjos por discípulos, caleches nas estradas do céu, um salão no fundo de um lago; os monstros, os mistérios; um título de vaudeville provocava terrores a meus olhos.
Depois expliquei os meus sofismas mágicos com a alucinação das palavras!
Acabei considerando sagrada a desordem de meu espírito. Ocioso, vítima de acabrunhante febre, invejava a felicidade dos animais – as lagartas, que representam a inocência dos limbos, as toupeiras, o sono da virgindade!
Meu caráter azedava-se. Despedia-me do mundo numa espécie de romances.
CANÇÃO DA MAIS ALTA TORRE
Que venha, que venha,
O tempo de amar.
Juntei tanta paciência
Que esqueci para sempre.
Temores e sofrimentos
Aos altos céus evolaram-se.
E uma sede malsã
Escurece-me as veias
Que venha, que venha,
O tempo de amar.
Qual descampado
Deixado ao abandono,
Coberto e florido
De incenso e joio,
Sob o feroz zumbido
Das mais sujas moscas.
Que venha, que venha,
O tempo de amar.
Amei o deserto, os pomares, adustos, as tascas miseráveis, as bebidas fracas. Arrastava-me por becos infectos e, olhos fechados, oferecia-me ao sol, deus do fogo.
“General, se restar um velho canhão em tuas muralhas arruinadas, bombardeia-me com petardos de terra seca. Às vitrines das esplêndidas lojas! Nos salões! Obriga a cidade a comer a própria poeira. Oxida as torneiras. Enche os toucadores do pó de rubis ardentes…”
Oh! O moscardo embriagado no mictório da hospedaria, atraído pela borragem, e que se dissolve a um raio de luz!
FOME
Se tenho apetite, é só
De terra e pedras.
Diariamente almoço ar,
Rocha, carvões e ferro.
Minhas fomes, voltai. Pastai, fomes,
O prado das sêmeas.
Atrai o alegre veneno
Das papoulas.
Comei cascalho britado,
Pedras de velhas igrejas;
Blocos erráticos de antigos dilúvios,
Pães semeados nos vales cinzentos.
***
O lobo uivava sob a folhagem,
Cuspindo as belas penas
De seu almoço de pássaros:
Como ele, assim me consumo.
As hortaliças, os frutos
Aguardam só a colheita;
Mas a aranha do sótão,
Esta vive de violetas.
Que eu adormeça! que eu arda
Nas aras de Salomão.
A fervura escorre pela ferrugem
E se mistura ao Cedrão.
Enfim, ó felicidade, ó razão, eu separava do céu o azul, que é meio negro, e vivi, centelha de ouro da luz natureza. De alegre, eu adquiria a mais burlesca e alucinante aparência que imaginar se possa:
Ela foi achada!
Que? a eternidade.
É o sol desfeito
Nos longes do mar.
Minha alma eterna,
Cumpre a tua promessa
Apesar da noite solitária
E do dia em chamas.
Para isso desprende-te
Dos humanos laços
Dos vãos entusiasmos!
E voa ao acaso…
— Nada de esperança,
Nem de orietur.
Ciência e paciência,
Certo é o suplício.
Lá se foi a manhã;
Brasas de cetim,
O vosso ardor
É a obrigação.
Ela foi achada!
— Que? – A Eternidade.
É o sol desfeito
Nos longes do mar.
***
Tornei-me um ópera fabuloso: vi que todos os seres têm a fatalidade da felicidade: a ação não é a vida, mas uma maneira de consumir forças, um enervamento. A moral é uma fraqueza do cérebro.
Afigurava-se-me que a cada ser outras vidas correspondiam. Esse senhor aí não sabe o que faz: é um anjo. Essa família é um ninho de cães. Em presença de certos homens, falei em alta voz com um momento de uma de suas outras vidas. – Assim, amei um porco.
Nenhum dos sofismas da loucura, – a loucura que se encarcera, – foi esquecido por mim: poderia repeti-los todos, possuo o sistema. Minha saúde viu-se ameaçada. Sobrevinha o terror. Caía no sono durante dias seguidos e, uma vez desperto, continuava os sonhos ainda mais tristes e, por um caminho cheio de perigos, a minha fraqueza conduzia-me aos confins do mundo e da Ciméria, pátria das sombras e dos turbilhões.
Tive que viajar, distrair os encantamentos concentrados em meu cérebro. Do mar, que eu amava como se ele me fosse lavar de uma mancha, via emergir a cruz consoladora. Eu havia sido condenado pelo arco-íris. A Felicidade era a minha fatalidade, o meu remorso, o meu verme: a minha vida sempre seria demasiado imensa para dedicá-la à força e à beleza.
A Felicidade! Seus dentes, suaves à morte, advertiam-me ao cantar do galo, – ad matutinum, ao Christus venit, nas mais sombrias cidades:
Ó estações, ó castelos!
Que alma há sem defeitos?
Fiz a mágica experiência
Da felicidade, da qual ninguém escapa.
Saudemo-la a cada vez
Que canta o galo gaulês.
Ah! Já não terei mais desejos:
Pois ela velará por minha vida.
Este encanto criou corpo e alma
E dispersou os esforços.
Ó estações, ó castelos!
A hora de sua fuga, ah!
Será a hora da morte.
Ó estações, ó castelos!
***
Tudo isto passou. Hoje eu sei saudar a beleza.
O Impossível
Ah! essa vida de minha infância, o largo caminho sobre qualquer tempo, sobrenaturalmente sóbrio, mais desinteressado que o melhor dos mendigos, orgulhoso de não ter pátria, nem amigos, que idiotice! – E somente agora o compreendo.
– Tive razão ao desprezar esses bons sujeitos que não perderiam ocasião de uma carícia, parasitas do asseio e da saúde de nossas mulheres, hoje que elas tão pouco se entendem conosco.
Tive razão de todos os meus desprezos: por isso me evado! Evado-me?
Eu me explico.
Ainda ontem suspirava: “Céus! somos tantos os condenados cá em baixo! Quanto a mim faz tanto tempo que pertenço a essa legião!
Conheço-os um por um. Aliás nos reconhecemos sempre; detestamo-nos. Ignoramos a caridade Somos, porém, corteses; nossas relações com o mundo corretíssimas”. É assombroso.
O mundo! Os mercadores, os ingênuos! – Não estamos desonrados. – Mas os eleitos, como nos receberiam? Pois há criaturas intratáveis e joviais, os falsos eleitos, posto que necessitemos audácia ou humildade para abordá-las. São os únicos eleitos. Não são os abençoadores!
Ao recobrar dois cêntimos de razão, – isso passa logo!- constato que os meus males vêm de não haver a tempo refletido que estamos no Ocidente. Os pântanos ocidentais! Não que acredite alterada a luz, gasta a forma, desviado o movimento… Bom! Eis que meu espírito quer a todo o transe ocupar-se com todos os desenvolvimentos cruéis que sofreu o espírito desde a morte do Oriente… Meu espírito assim o quer!
Acabaram-se os dois cêntimos de razão! O espírito é autoridade, ele exige que eu permaneça no Ocidente. Seria preciso fazê-lo calar para eu terminar como desejara.
Mandava ao diabo as palmas dos mártires, os esplendores da arte, o orgulho dos inventores, o ardor dos salteadores; retornava ao Oriente e à sabedoria primitiva e eterna. – Até parece um sonho de grosseira preguiça!
Todavia, não pensava na delícia de escapar aos sofrimentos modernos. Não tinha em mira a sabedoria bastarda do Alcorão. – Mas não é um suplício real depois desta declaração da ciência, que o cristianismo, o homem se engane, se prove evidências, infle de prazer ao repetir essas provas e só assim viva? Tortura sutil, nécia; fonte de minhas divagações espirituais. Talvez a natureza pudesse aborrecer-se! O Sr. Sabe-Tudo nasceu com o Cristo.
Não será isto porque cultivamos a bruma? Ingerimos febre com os nossos legumes aquosos. E a embriaguez! O tabaco! e a ignorância e as dedicações! – tudo isto está muito distante do pensamento da sabedoria do Oriente, a pátria primeira? Para que um mundo moderno, se tais venenos se engendram?
Argumentarão os homens da Igreja: “Está certo. Mas queres te referir ao Éden. Ora, nada conclui a teu favor na história dos povos orientais”. – Mas é isso mesmo; é ao Éden que me refiro! Que significa para o meu sonho, esta pureza das raças antigas!
E os filósofos: “O mundo não tem idade. A humanidade desloca-se tão somente. Estás no Ocidente, livre porém de habitar o teu Oriente, por mais antigo que o desejes – e de aí habitar a teu bel prazer. Não sejas um vencido”. – Filósofos, vós pertenceis ao vosso Ocidente.
Espírito meu, cautela. Abandona os meios violentos de salvação.
Exercita-te! – Ah! a ciência não anda assaz ligeira para nós.
– Mas compreendo que meu espírito dorme.
Se estivesse sempre desperto, a partir deste instante, alcançaríamos logo a verdade que provavelmente nos rodeia com seus anjos em pranto!…
– Se até agora tivesse estado desperto, seria porque não havia cedido aos instintos deletérios numa época imemorial!…
– Se houvesse estado sempre desperto, eu vogaria em plena
sabedoria!…
Ó pureza! pureza!
É este minuto de vigília que me revelou a visão da pureza! – Pelo espírito vai-se a Deus!
Dilacerante infortúnio!
O Relâmpago
O trabalho humano! é a explosão que ilumina o meu abismo de quando em quando.
“Nada é vaidade; em direção à ciência e para a frente!” exclama o moderno Eclesiastes, isto é, Toda a gente. E todavia os cadáveres dos maus e dos ociosos caem sobre o coração dos outros… Ah! Depressa, mais depressa; lá longe, além, muito além da noite, estas recompensas futuras, eternas… escaparemos delas?
Que posso fazer? Conheço o trabalho; e a ciência é demasiado vagarosa. Que a oração voa e que a luz explode… bem o vejo. É assaz simples e faz calor demais; passarão sem mim. Tenho o meu dever; como muitos, sentir-me-ia orgulhoso pondo-o de lado Está gasta a minha vida. Vamos! finjamos, folguemos, ó piedade! E existiremos enquanto nos divertirmos, a sonhar amores monstruosos e universos fantásticos, enquanto nos lamentarmos e disputarmos contra as aparências do mundo, saltimbanco, mendigo, artista, bandido, – sacerdote! Sobre meu leito de hospital, o cheiro do incenso me fez tão poderoso; guardião dos perfumes sagrados, confessor, mártir…
Reconheço ai a sórdida educação de minha infância. Que importa!
Viver meus vinte anos, se mais outros vinte anos eu ainda viver…
Não! Não! no momento eu me revolto contra a morte! O trabalho afigura-se-me ofensivo demais ao meu orgulho: minha traição ao mundo seria um suplício assaz breve. No derradeiro instante, atacarei à direita, à esquerda…
Então, – oh!. – pobre alma querida, será perdida por nós a eternidade.
Manhã
Não é verdade que uma vez vivi urna juventude amável, heróica, fabulosa, digna de gravar-se em páginas de ouro? Incomparável ventura! Por que crime, por que erro, vim a ser castigado com a fraqueza de hoje? Vós que pretendeis que os animais solucem de dor, que os doentes desesperem, que os próprios mortos sofram pesadelos, procurai aclarar os motivos da minha queda e do meu sonho. Quanto a mim, não posso melhor explicar-me do que um mendigo com seus monótonos Pater e Ave Maria. Eu não sei mais falar.
Todavia, agora, creio ter encerrado o relato de meu inferno. Era, não há negar, o inferno; o antigo, aquele cujas portas o filho do homem descerrou. Do mesmo deserto, na mesma noite, meus olhos sempre cansados se voltam para a estrela de prata, sempre, sem que os Reis da vida, se comovam, os três magos, o coração, a alma, o espírito.
Quando iremos enfim, para além das praias e das montanhas, saudar o nascimento do trabalho novo, da sabedoria nova, a fuga dos tiranos e dos demônios, o desaparecimento da superstição; quando iremos adorar – os primeiros! – a Natividade sobre a terra?
O canto dos céus, a marcha dos povos! Escravos, não amaldiçoemos a vida.
Adeus
O outono já! – Mas por que ter saudades de um eterno sol, se estamos empenhados na descoberta da claridade divina, – longe dos que morrem nas estações?
O outono. Nossa barca elevada nas brumas imóveis navega em direção ao porto da miséria, a cidade enorme de céu sujo de fogo e lodo. Ah! Os farrapos podres, o pão ensopado de chuva, a embriaguez, os mil amores que me trazem crucificado! Não acabará um dia este vampiro, tirano de milhões de almas e de corpos mortos que serão ju1gados! Revejo-me de pele corroída pelo lodo e pela peste, cabelos e axilas cheios de piolhos, e piolhos mais gordos ainda no coração, estendido entre desconhecidos sem idade, sem sentimento… Bem poderia acabar aí… A horrenda evocação!
Abomino a miséria.
E temo o inverno por ser a estação do conforto!
– Por vezes descortino no céu praias infinitas cobertas de alvas nações festivas Enorme navio de ouro, por cima de mim, agita suas bandeiras multicores à brisa da manhã. Criei todas as festas, todos os triunfos, todos os dramas. Experimentei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Acreditei adquirir poderes sobrenaturais. Ora bem! eis que devo enterrar minha imaginação e minhas lembranças! Que bela glória de artista e narrador arrebatada!
Eu! eu que me acreditava mago ou anjo, fora e cima de toda a moral, acabo rendido à terra, com um cumprir, e a áspera realidade a abraçar. Campônio!
Engano-me? acaso será a caridade irmã da morte para mim? Enfim, pedirei perdão por ter-me alimentado de mentira. E vamos. Mas nem uma mão amiga! e onde pedir socorro?
***
Sim, a nova hora é, pelo menos, assaz severa.
Pois já posso afirmar que alcancei vitória: o ranger de dentes, o silvo do fogo, os suspiros pestilentos moderam-se. Apagam-se todas as lembranças sórdidas. Evolam-se as derradeiras queixas, – ciúme dos mendigos, dos salteadores, dos amigos da morte, dos retardados de toda casta -. Condenados, se eu me vingasse!
Cumpre ser absolutamente moderno.
Nada de cânticos: manter a posição conquistada. Noite de pedra! o sangue seco suja-me o rosto, e não posso contar com coisa alguma atrás de mim, a não ser este horrível arbusto!…
O combate espiritual é tão brutal quanto a batalha dos homens; mas a visão da justiça é unicamente o prazer de Deus.
Entretanto, é chegada a véspera. Recebamos todos os influxos do vigor e da ternura verdadeira. E, à aurora, revestidos de ardente paciência, entraremos as esplêndidas cidades.
Que dizia eu de mão amiga! Já é imensa vantagem poder sorrir dos velhos amores mentirosos e envergonhar essas duplas de embusteiros – vi lá longe o inferno das mulheres; – e ser-me-á dado possuir a verdade numa alma e num só corpo.
Abril – Agosto, 1873
Jean-Nicolas Arthur Rimbaud, (Charleville, 20 de outubro de 1854 — Marselha, 10 de novembro de 1891) foi um poeta francês. Produziu suas obras mais famosas quando ainda era adolescente sendo descrito por Paul James, à época, como o poeta de língua francesa que soube desde a qualidade dos sentidos manifestar sua poesia e predileção pela linguagem humana. Como parte do movimento decadente, Rimbaud influenciou a literatura, a música e a arte modernas. Era conhecido por sua fama de libertino e por uma alma inquieta, viajando de forma intensiva por três continentes antes de morrer de um câncer aos 37 anos de idade.
A poesia de Rimbaud, bem como sua vida, impressionou escritores, músicos e artistas do século XX. Pablo Picasso, Dylan Thomas, Allen Ginsberg, Vladimir Nabokov, Bob Dylan, Patti Smith, Giannina Braschi, Léo Ferré, Henry Miller, Van Morrison e Jim Morrison foram influenciados por sua poesia e por sua vida. A vida de Rimbaud foi retratada em vários filmes. No filme Una stagione all’inferno (Uma Temporada no Inferno), de 1970, do cineasta italiano Nelo Risi, o escritor francês é interpretado por Terence Stamp e Verlaine por Jean-Claude Brialy. Em 1995, a cineasta polonesa Agnieszka Holland dirigiu Eclipse Total de uma Paixão, no qual Leonardo DiCaprio interpreta Rimbaud e David Thewlis, Paul Verlaine.
A vida com Paul Verlaine (1871-1875)
Ele retornou a Paris em setembro de 1871 por um convite do eminente poeta influenciador do simbolismo Paul Verlaine (depois que Rimbaud lhe mandou uma carta contendo vários exemplos do seu trabalho) e residiu brevemente em sua casa. Este, que era casado, apaixonou-se prontamente pelo adolescente calado, de olhos azuis e cabelo castanho-claro comprido. Enquanto é provável que Verlaine já havia tido um caso homossexual, ainda permanece incerto se o relacionamento com Verlaine foi o primeiro de Rimbaud. Os amantes levaram uma vida ociosa, regada a absinto e haxixe. Escandalizaram o círculo literário parisiense por causa do comportamento ultrajante de Rimbaud, o arquetípico enfant terrible, que durante este período continuou a escrever notáveis versos visionários.
O tempestuoso caso amoroso entre ambos levou-os a Londres em setembro de 1872, Verlaine abandonando sua esposa e um filho pequeno (ambos sofriam de abusos durante as iras alcoólicas de Verlaine). Os amantes viveram em uma pobreza considerável, em Bloomsbury e em Camden Town, desprezando uma vida de ensino e uma pensão da mãe de Verlaine. Rimbaud passou seus dias na sala de leitura do Museu Britânico onde “calor, luz, penas e tinta eram de graça“.
Em junho de 1873, Verlaine voltou para Paris, tendo enfrentado dificuldade para suportar a ausência de Rimbaud. Em oito de julho, ele mandou um telegrama ao jovem poeta, lhe dando instruções para ir ao Hotel Liège em Bruxelas; Rimbaud concordou imediatamente. O encontro em Bruxelas foi péssimo; um reclamando do outro e Verlaine bebendo constantemente. Na manhã de dez de julho, Verlaine comprou um revólver e munição; à tarde, numa “fúria de bêbado”, disparou dois tiros em Rimbaud, um deles ferindo o poeta de dezoito anos no pulso.
Rimbaud considerou o ferimento superficial e a princípio não acusou Verlaine. Após isto, ele e sua mãe acompanharam Rimbaud a uma estação de trem em Bruxelas, onde Verlaine se comportou como um louco. Isto fez Rimbaud sentir medo do poeta, que então se virou e foi embora. Em suas palavras “então eu [Rimbaud] implorei para um policial o prender [Verlaine]”. Ele foi detido por tentativa de homicídio e submetido a um exame médico humilhante. Também foi interrogado sobre sua correspondência íntima com seu amante e sobre as acusações de sua mulher sobre a natureza de sua relação com Rimbaud, que eventualmente retirou suas queixas, porém o juiz condenou Verlaine a dois anos de prisão.
Rimbaud retornou a sua casa em Charleville e completou sua prosa Une saison en enfer (Uma Estação no Inferno), considerada pioneira nas instâncias do simbolismo moderno e escreveu uma descrição sobre sua vida de drôle de ménage (farsa doméstica) com Verlaine, seu frère pitoyable (lamentável irmão) e a vierge folle (virgem louca) por quem ele era um l’époux infernal (noivo infernal). Em 1874 retornou para Londres com o poeta Germain Nouveau e suas arrasantes Illuminações.
À volta da mesa, por Henri Fantin-Latour, 1872, Rimbaud é o segundo à esquerda, tendo ao seu lado direito Paul Verlaine
Repercussão
O norte-americano Henry Miller, um dos grandes admiradores da poesia simbolista de Rimbaud, diz, diante disso, que Rimbaud chegará a superar clássicos comportamentos; como o introspectivo e inquieto jovem estampado pelo personagem Hamlet, de Shakespeare. “Acho que existem muitos Rimbauds neste mundo afora e que esse número aumentará com o passar dos anos. Também acho que Rimbaud vai eliminar, do mundo futuro, Hamlet e Fausto. Até que o velho mundo desapareça por completo, o indivíduo ‘anormal’ tende a ser cada vez mais a regra. O novo homem só se descobrirá quando terminar o conflito entre a coletividade e o indivíduo. Aí então veremos o homem em sua plenitude e esplendor“.
Já Paulo Leminski escreveu no curtíssimo ensaio “Poeta Roqueiro” que “se vivesse hoje, Rimbaud seria músico de rock” e que Rimbaud “pasmou os contemporâneos com uma precocidade poética – (escrevendo) obras-primas entre os 15 e os 18 anos“. Georges Duhamel vai pela mesma picada: “O que Mallarmé não parece ter adivinhado é que o ‘Viajante notável’ voltaria, que ia ficar, que não pararia de crescer, que sua influência se estenderia sobre todas as gerações e que aquele garoto seria no século novo não o mestre, e sim, melhor ainda, o mensageiro, o profeta de toda uma juventude febril, entusiasta, rebelde“. A imagem mais conhecida de Rimbaud, esta mesma que ilustra o verbete, reforça a ideia de enfant terrible que se relaciona à sua personalidade.
Rimbaud (autorretrato) em Harar em 1883
Morte
Rimbaud desenvolveu sinovite em seu joelho direito e, subsequentemente, um carcinoma no mesmo joelho. Seu estado de saúde o forçou a partir para a França em 9 de maio de 1891, onde foi admitido num hospital em Marselha, e ali teve sua perna amputada no dia 27 de maio. No pós-operatório foi descoberto que Rimbaud sofria de câncer.
Após uma curta estada na casa de sua família, voltou a viajar para a África, mas a sua saúde piorou durante a viagem, sendo readmitido no mesmo hospital em Marselha. Lá, após algum tempo de sofrimento e eventuais visitas de sua irmã Isabelle, Rimbaud morreu a 10 de novembro de 1891, com apenas 37 anos, e seu corpo foi enterrado no jazigo da família na cidade de Charleville.
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