O primeiro disco solo de André Neto, Sal Grosso
Uma viagem no tempo através da ausência dos sons mais óbvios. Sal Grosso é o nome do primeiro disco solo de André Neto, vocalista da Lítera. O álbum é uma sinfonia gravada com um telefone celular, trazendo a experiencia de sons sombrios. É um trabalho experimental, que explora os sentidos sonoros e a forma de fazer música.
Ouça aqui a sinfonia “Sal Grosso” de André Neto
- sal grosso
- porto alegre 1863-1864
- claussner
- santa casa
- cemitério atrás da igreja
- dissimulado
- faca de cozinha
- e depois (catarina)
- sei (josé)
- claussner parte II
Porto Alegre 1863-1864
disfarce da razão, abandonei esse terreiro
alguém te chama
caindo pela Rua do Arvoredo
bem quando os caminhos se bifurcam
eu apareço
disfarce da razão, abandonei esse terreiro
alguém te chama
um cão que me persegue, me revela
o sol em Porto Alegre que se oculta
às 5h da tarde
aparência amistosa, eles me procuram
no céu escuro de Porto Alegre
a igreja da Matriz, o destino quis que eu matasse
como a criança que matei dentro de mim
eu matei
a igreja da Matriz, o cemitério indígena
os índios que suportam o peso da estrutura
quem não descansa nem depois da morte
a morte os devolvo
Santa Casa
Sete horas, sete cruz
Santa Casa de Misericórdia
pobres da cidade, Madre de Deus
cateter imundo, um homem agoniza
o rosto, o medo, o mal de lazaro
ninguém chega perto, o padre da a extremarão
nada vê, completamente cego
diz: Deus, me fara justiça
E depois
E depois, vem você
e depois, sem você
vêm você depois
e depois, vêm?
depois de você vêm eu
quem eu depois?
Sei
sei cansei de imaginar
Sei, cansei de machucar
nós dois
Voz de Décio Freitas, em um documentário de televisão.
Tratado – Sal Grosso
Sal grosso: sal que não passou pelo processo de refinamento. A essência, o espírito de uma ideia, frase ou doutrina.
Ouça esse álbum com fones de ouvidos e feche os olhos. Imagine: Porto Alegre, 1863. Uma cidade extremamente provinciana mas caprichosa. A história que aqui será contada é baseada em fatos reais e se refere ao primeiro serial killer das Américas, José Ramos, e à sua cúmplice e companheira Catarina Palse.
Não matarás. – Êxodo 20:13 (Quinto Mandamento)
Ninguém sabe a verdade sobre as linguiças de carne humana, mas os assassinatos são verídicos. Ninguém sabia o que estava acontecendo. O silêncio falava. O clima de tensão que a pacata cidade do século XIX se viu tendo que enfrentar durante o segundo império brasileiro. Segundo o historiador Décio Freitas, autor do livro O Maior Crime da Terra, os processos estão incompletos, faltam folhas, é todo manuscrito em português arcaico de difícil leitura e se realmente a história é verdadeira, é pouco provável que se ache a resposta, pois somente as folhas faltantes nos autos é que poderiam dar algum indício sobre a veracidade das tais linguiças, ou não. O fato é que existiram o crime, porém as provas sobre as linguiças fabricadas com carne humana foram extraviadas no decorrer do processo e com o passar dos tempos. Portanto, jamais se saberá se a história é completamente verdadeira.
“Há um chacal adormecido em cada homem” – Charles Darwin escreveu em seu caderno de anotações um curto comentário sobre o canibalismo registrado em Porto Alegre
O silêncio que falava
Essa sinfonia tem a pretensão de levar o ouvinte pra essa época, sentir o frio de Porto Alegre e aquele silêncio tão eloquente. E se perguntar: o que desperta o chacal adormecido dentro de nós? Esse questionamento foi feito por Charles Darwin que estudou o caso e o cérebro de José Ramos em sua passagem pelo Brasil. Na Europa, o caso chamou muito mais a atenção das pessoas do que dos portoalegrenses constrangidos e assustados, que se dividiam entre o pavor diante da possibilidade de ter comido a carne da própria espécie e o reconhecimento do que todos somos capazes de fazer. Enquanto que aqui o assunto era evitado, na Europa, o crime foi inspiração para literatura e cinema já na época e no início do século XX.
Dados técnicos e créditos
As imagens são de Porto Alegre, na época dos cenários dos crimes. Não sei quem são os autores e nem os responsáveis pelas fotos. Se alguém que aqui chegarem tiver essas informações, peço que me avise sobre autoria e eu darei os devidos créditos com muito prazer.
Esta sinfonia é baseada no livro “O maior crime da terra” de Décio Freitas (título de notícias do jornal francês Le Temps, sobre os crimes de José Ramos)
Todas as músicas por André Neto. Mixagem e masterização por André Neto. Todas as músicas foram gravadas com celular modelo Samsung Galaxy J5 e editadas no Adobe Premiere Pro CC. Violões, sons externos captados com o mesmo celular por André Neto. Outros ruídos foram retirados de sites de bancos gratuitos de sons armazenados no acervo digital de André Neto, dos quais já não possui mais a informação de origem. Não existe nenhum material físico desta obra nem tão pouco será comercializado.
André Neto – Porto Alegre, outono de 2018.
Repercussão do caso
- Na Europa, Charles Darwin ficou sabendo do caso na Inglaterra e escreveu em seu caderno de anotações um curto comentário sobre o canibalismo registrado em Porto Alegre: “Há um chacal adormecido em cada homem”.
- Em 1987, o caso inspirou a publicação do livro Cães da província, de Luiz Antônio de Assis Brasil.
- Em 1996, o historiador Décio Freitas, publicaria o livro O Maior Crime da Terra – O Açougue Humano da Rua do Arvoredo, pela Editora Sulina, após uma pesquisa aprofundada sobre o assunto.
- Posteriormente, em 2005, a história dos crimes da Rua do Arvoredo inspiraria também o romance do escritor David Coimbra, Canibais: Paixão e Morte na Rua do Arvoredo.
- No Rio Grande do Sul, a RBS – afiliada da Rede Globo na região – produziu um documentário sobre o caso. Um outro trabalho independente em documentário já tinha sido produzido.
- Em 2006, a Rede Globo apresentou um documentário de 40 minutos, com dramatização sobre o crime, no programa Linha Direta Justiça. Os atores Carmo Dalla Vecchia e Natália Lage estão no elenco do episódio do programa, como José Ramos e sua mulher Catarina. Como trilha sonora do episódio, foram incluídas algumas músicas do grupo inglês Radiohead. Para reconstituir o crime, os trabalhos de pesquisa da equipe do Linha Direta foram amplos. A produção buscou informações nos arquivos públicos do Rio de Janeiro e de Porto Alegre e verificou desde recibos da época e passaportes, até as autópsias dos corpos das vítimas.