Tempo de mecânico e sede de infinito
Tempo de mecânico e sede de infinito numa oficina do Sarandi. Aos 15 anos, fui trabalhar na oficina mecânica de caminhão do meu avô.
O “Neto” do meu nome é por causa dele. Éramos grandes amigos, parceiros de viagem, de caça ao tesouro, entre outras aventuras que um dia eu conto aqui. Em seguida, fui morar em um quarto na oficina de mais ou menos 2×4 metros, era o quarto em que o meu tio Chico morava antes. Nesse momento, o futuro ficava cada vez mais incerto pra mim. Tinha medo de ser pra sempre alguma coisa que não estava nas minhas expectativas, mas também não queria desapontar o meu vô. Dizer que não queria ser mecânico como ele seria uma grande decepção eu acho. Não sabia ainda exatamente o que gostaria de ser, mas as opções que eu tinha eram: trabalhar como uma engrenagem numa profissão com que eu não me identificava ou seguir uma via que não era legal. Só que eu não queria nenhuma delas.
TU NÃO É HOMEM? TEM QUE AGUENTAR!
A vida numa oficina mecânica à moda antiga no inverno era fria, mais fria do que se pode imaginar. No verão, o calor era insuportável. A graxa do piso potencializava qualquer clima. Era um trabalho pesado, e a única palavra de resiliência era que meus tios também passaram por aquilo e que na época deles era bem pior. Na minha cabeça, eu seria um fraco se não suportasse. O machismo molda a gente desde pequeno, ouvindo frases do tipo “tu não é homem? tem que aguentar!”.
Com certeza ali não era o lugar onde um adolescente gostaria de estar. A coisa era bem rústica, as ferramentas rudimentares e a insalubridade era vista como “sem frescura”. Ao mesmo tempo, havia muita sinceridade, pessoas de verdade. Lá conheci gente fantástica, histórias de caminhoneiros com um conhecimento empírico inacreditável. A oficina nesse período era: meu Tio Chico, meu avô e eu de ajudante. Essas são duas das pessoas que construíram minha base, que me ensinaram sobre honestidade e sobre nunca desistir. Sabe aquelas pessoas que não tem tempo ruim? Eles. Hoje reconheço tudo que vivi e honro esses momentos. No auge da puberdade, trabalhar lá acabou potencializando coisas boas e ruins que existiam em mim.
Comecei a escrever poesia nesse quartinho da oficina. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Eu era muito organizado e meu tio ficava muito orgulhoso de eu manter o quarto sempre arrumadinho, mostrava pros clientes mais próximos todo faceiro. Acho que eu surpreendi. Ele gostou muito da minha atitude, de eu ter feito algo legal sem ninguém precisar pedir. E eu ficava muito feliz de ver ele feliz.
Uma das coisas ruins era a vergonha de chegar na aula fedendo a diesel e com as mãos encardidas de graxa. Antes de ir, conferia mil vezes se estava tudo certo, mas mesmo assim tinha dias em que aquilo simplesmente não saía de mim. Eu sonhava em conseguir um emprego em que pudesse trabalhar limpo, dentro de um escritório, pra poder ter mais tempo, ser respeitado e conseguir montar uma banda. Não sabia exatamente o que eu faria num escritório, mas achava bonita a ideia de estar com roupas limpas, sentado na frente de um computador, tomando um café.
A SAÍDA DA OFICINA
Meu avô, o Seu André, era muito conhecido e respeitado como mecânico do bairro. Ele morreu quando eu tinha de 15 pra 16 anos, em consequência de um câncer. Foi muito triste. Com certeza o Tio Chico foi o que ficou mais arrasado. A família, pra mim, mudou com a partida dele. Brigas, disputa de bens, partilha familiar… assuntos delicados em que eu não quero tocar. Eu pensava, e cheguei a escrever na parede do meu quarto: “Não tínhamos nada e agora estamos brigando por nada”.
Segui trabalhando na oficina por mais uns anos. Ficamos eu e o Tio Chico lá. Ele sempre foi um grande exemplo de pessoa, sinceridade, dedicação e trabalho, ainda que sempre com muita dificuldade. Nesse instante, eu sentia que aumentava ainda mais a responsabilidade sobre mim. Por levar o nome do vô e de alguma forma querer honrar a memória dele, sentia que eu tinha que “dar certo”, mas me frustrava a ideia de ter que ser mecânico. Eu queria ter uma banda, ser um poeta. Era um conflito entre a necessidade de ter um emprego estável, seguir o negócio da família, e o meu sonho de ser artista.
Saí da oficina e deixava ali boas e más recordações. Muitas lições. Amadureci bastante. Acho que foi o que me salvou. Minha revolta de adolescente tinha dado lugar a uma explosão criativa e empática. Isso gerou em mim a reação de que eu iria mudar o eixo da minha vida a qualquer preço. Fui morar na garagem dos meus pais, dividia a peça com um Monza 85. Quando meu pai ligava o carro, o cheiro de combustível penetrava nas minhas roupas, nas coisas todas, era um horror. Esse cheiro seguia comigo. E era assim que eu acordava todos os dias. Mas era meu cantinho, aquele pequeno espaço era o meu novo mundo.
A ORIGEM DA MINHA SEDE DE INFINITO
Passava os dias lendo Fernando Pessoa, Mario Quintana, Nietzsche, Schopenhauer, Augusto dos Anjos. Conversava muito com meu tio Carlos sobre filosofia. Foi numa conversa dessas em que ouvi pela primeira vez a expressão “sede de infinito”. Ele teve um papel fundamental na minha construção filosófica e ética. Influenciou a minha paixão por assuntos como idade média, cruzadas, pensadores e metafísica. No verão, quando as ruas ficavam desertas, caminhávamos pela rua do valão no fim de tarde. Tudo isso foi se misturando com a vida insegura, os dias tediosos e um futuro incerto. Naquele momento parecia confuso, mas hoje consigo entender que aquilo era eu preparando a bagagem pra uma grande viagem em que eu nem sabia que embarcaria.
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