Porto Alegre em 1834, segundo Arsène Isabelle
O texto abaixo foi retirado do livro Voyage à Buénos Ayres et à Porto Alegre, par la Banda Oriental de 1830 a 1834 de Arsène Isabelle, com tradução de Teodemiro Tostes.
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NOVO ÁLBUM DA LÍTERA
Arsène Isabelle (Le Havre, 30 de março de 1806 – Le Havre, 13 de janeiro de 1879 ) foi um comerciante, diplomata, jornalista e naturalista francês. Chegou ao Uruguai em 1830 e logo iniciou uma viagem através da Argentina, Brasil e Uruguai, entre 1830 e 1834. Já em 1835 publicou o livro que trata dessa viagem.
No capítulo sobre Porto Alegre (Arsène chegou em Porto Alegre em 20 de março de 1834, vésperas da Revolução Farroupilha que criou a República de Piratini de 1835 a 1845) ele faz um excelente relato da jovem cidade (60 anos) que encontrou com alguns elogios e críticas, em especial sobre a escravidão.
Aquarela de Debret intitulada Paranaguá. Porém trata se de um equivoco do autor, a paisagem/panorama é de Porto Alegre (1827). No canto esquerdo está o Caminho Novo (atual rua Voluntários da Pátria).
PORTO ALEGRE
(Capítulo XVIII – do livro “Voyage à Buénos Ayres et à Porto Alegre, par la Banda Oriental de 1830 a 1834”)
Eis-nos transportados à pequena capital de uma grande província do Brasil, a duas mil léguas mais ou menos do centro ardente da civilização. As luzes só chegam a nós por reflexão. Satélites oficiais encarregam-se do cuidado de distribuí-las, tão equitativamente quanto a sua inteligência lhes permite.
Vede que céu e que sítios! É o céu da Itália! São os sítios e a vegetação da Provença! Estamos em Porto Alegre! Humanizemo-nos, tratemos de descrever vulgarmente o pitoresco de uma cidade do Brasil, cujo nome, certamente feliz, está, entretanto, longe de dar uma ideia dela.
Sob o 30º paralelo
Na extremidade de uma colina que vem do leste, sob o 30º paralelo de latitude austral e o 54º grau de longitude ocidental do meridiano de Paris, eleva-se em anfiteatro, sobre uma inclinação de mais ou menos sessenta metros, a bela cidadezinha de Porto Alegre, cujos tetos cor-de-rosa, um pouco elevados e salientes, destacam-se admiravelmente coroando casas brancas ou amarelas, de uma arquitetura simples e graciosa.
Vista Geral da cidade de Porto Alegre, Província de São Pedro do Rio Grande do Sul
E. Wiedmann – Litogravura, s.d. – Fundação Biblioteca Nacional
Cinco rios
Cinco rios, que trazem o tributo de suas águas fecundas e se reúnem ali para formar o rio Grande do Sul, apresentam, diante da cidade, uma vasta bacia semeada de numerosas ilhas, muito arborizadas e cheias de habitações campestres. Atrás da cidade, ou da colina, à distância de uma légua, uma pequena cadeia de montes de uns duzentos metros de altura, descreve um semicírculo e dirige-se ao sul, margeando o rio, de um modo desigual, por espaço de oito a nove léguas.
Entre esses montes e a cidade, estende-se uma planície baixa, unida, de três a quatro léguas de circuito, fechada entre as montanhas do sul, as colinas do leste e do norte, e o rio Grande, a oeste, o qual, orgulhoso do volume de suas águas, dirige, majestosamente, seu curso para o sul, através de rochas de conglomerados, e vai formar a lagoa dos Patos de que falarei mais adiante.
Duas grandes baías
Na verdade, Porto Alegre encontra-se no meio de duas grandes baías, separadas pela colina sobre a qual está situada: uma ao norte, que forma a enseada e o porto, e outra ao sul, abandonada em parte pelas águas, e formando já uma espécie de cidade baixa, enfeitada de jardins, de praias, de usinas, etc. Seria, como se vê, muito fácil fazer de Porto Alegre uma ilha, cortando-se a colina a leste e abrindo-se um canal de junção com o arroio que serpenteia na planície.
Herrmann Wendroth – Porto Alegre vista do alto da Misericórdia em direção ao sul, c. 1852
Quereis gozar um espetáculo que não é muito comum, mesmo na Grande Ópera?
Subi ao ponto mais elevado da colina, onde está a praça principal e tereis, abaixo de vós, ao norte (que, como sabeis, é o meio-dia do hemisfério austral) a cidade que se estende em taludes; a enseada coberta de navios; as ilhas e o curso sinuoso dos cinco rios que se alonga exatamente como uma mão aberta, de dedos afastados; depois as casas de campo orlando em semicírculo a margem sombreada da baía; os vales arborizados que se prolongam paralelamente às colinas do nordeste; a Vargem, ou a planície que fica atrás da cidade, com seus jardins, seus laranjais, suas bananeiras, palmeiras, cactos, tudo cercado de moitas espessas, quase sempre cobertas de mimosas amarelas, vermelhas, violetas ou brancas e, por fim, mais além da planície do sul, repousando agradavelmente a vista, lindas casas de campo (quintas, chácaras ou fazendas) bem construídas e situadas pitorescamente na inclinação dos morros.
Herrmann Wendroth – Porto Alegre vista do sul, 1852
Se escolherdes, para gozar esse quadro delicioso, um dos belos dias tão comuns a essa soberba zona, um tempo calmo, à hora em que Zéfiro faz a sesta, o momento em que o rio toma a aparência de um imenso espelho, tereis diante de vós um panorama dos mais pitorescos e animados.
Tudo aquilo que vistes dobra-se em reflexos: as ilhas e os seus rebanhos, as casas e a sua vegetação de zona tórrida, os navios à vela e uma quantidade de elegantes gôndolas, enfeitadas de cores vivas e sulcando os cinco confluentes. Enfim, dirigindo os olhos para o horizonte, na direção norte, vereis (se não fordes míope), à distância de quinze léguas, a cadeia de montanhas da serra Grande, velada em parte, femininamente, por uma atmosfera vaporosa, como para irritar nossa curiosidade.
Porto Alegre era uma pequena Vila, se comparada a Buenos Aires de 1830.
Imagem de Buenos Aires no livro de Arsène Isabelle.
Sabei que não se goza, apenas, uma vista agradável em Porto Alegre; goza-se, também, uma boa saúde, e não há clima que mais convenha aos europeus do que o seu. Não se sentem os calores sufocantes da praia do Rio de Janeiro, nem as polvaredas e as noites frias de Buenos Aires: é um ar temperado, embalsamado, puro e saudável. Basta dizer-se que os médicos não fazem fortuna ali, e que os próprios farmacêuticos se vêem obrigados a transformar-se em perfumistas.
Herrmann Wendroth – Porto Alegre vista do Rio Guaíba, c. 1852
Os edifícios, ainda que de uma arquitetura simples, não eram desprovidos de elegância.
Isto se aplica às casas de construção nova. Feitas de tijolos e de pedra de cantaria, são geralmente de um só andar, mas muito elevadas, de uma forma quase sempre quadrada, com um grande número de janelas no sobrado e portas no rés-do-chão.
Herrmann Wendroth – Porto Alegre em 1852 – Praça da Matriz em dia de procissão,
com a antiga Igreja Matriz e o primeiro palácio do governo ao lado.
Estas,cuja altura é de quinze a dezoito pés, são estreitas e multiplicadas; as janelas têm, também, bastante altura, são geralmente duplas, com dois batentes, arqueadas, e com grandes vidraças cortadas diferentemente em losango, quadrado, hexágono ou octógono.
Um balcão de ferro recortado, às vezes dourado, ocupa toda a fachada, e alguns arcos leves estão nele colocados, de distância em distância, para sustentar, na época do calor, um toldo bordado. O teto, coberto de telhas redondas, avança, erguendo-se, à maneira dos telhados chineses, numa cornija bem trabalhada. Esta parte saliente do teto está pintada de vermelho e ressalta, admiravelmente, sobre a moldura da cornija pintada de branco.
Aquarela de Debret, 1825 – Homem do Rio Grande e o trabalhador do campo, o Gaúcho.
D. Pedro I fez derrubar, num dia de mau humor
As casas de construção antiga são baixas, guarnecidas de janelas corrediças e portas com gelosias; mas, desde que dom Pedro I fez derrubar, num dia de mau humor, todas as rótulas do Rio de Janeiro, vão desaparecendo, também, pouco a pouco, nas outras cidades do Império.
Nada mais desagradável de ver do que essas rótulas, espécie de porta ou sacada com claraboia, fazendo as vezes de gelosia. Imaginai uma longa rua guarnecida de rótulas, em cada lado, que servem de trincheira, de parapeito de galeria e de guarda-sol a umas caras bonitas (ou que a gente supõe bonitas), que se distraem a zombar de quem passa, escondendo-se para evitarem um olhar de admiração ou de desprezo!
O forasteiro sente-se só nessa rua, porque não pode, de maneira alguma, apesar do seu alto grau de filantropia, sentir-se em sociedade no meio de negros embrutecidos, que circulam misturados com os bodes e cabras de que as ruas estão cheias.
Ele se sente, portanto, só consigo mesmo, vendo em torno tantas barricadas.
Mas, infelizmente, não é assim: no momento em que segue mais descuidado, uma imensa rótula se abre para deixar passar uma risada estúpida, e fecha-se de novo, rapidamente, como se sofresse de uma doença contagiosa. E não adianta zangar-se nem vociferar, porque o baço se manifesta facilmente nesse ditoso clima…
Rua da Praia (Rua dos Andradas) em 1860
O melhor é passar depressa e contentar-se em maldizer, secretamente, a barbárie dos portugueses, que, encerrando as suas mulheres nessa espécie de haréns, as tornam tão ignorantes, tão ridículas, que a simples vista de um estrangeiro é para elas uma fantasmagoria, uma sombrinha chinesa. Entretanto, era esse o aspecto do Rio de Janeiro, antes da chegada de dom Pedro, e é ainda o de uma infinidade de pequenas cidades do interior.
É preciso dizer que, em Porto Alegre, o viajante já está menos exposto a essas surpresas desagradáveis, apesar de os portugueses e brasileiros não serem, ali, menos ciumentos do que no Rio, na Bahia, em Pernambuco ou em outros lugares. Apenas, seu ciúme não se manifesta de uma maneira tão chocante.
A vizinhança dos castelhanos (é assim que designam os habitantes das províncias do Prata) contribui para modificar bastante seus costumes otomanos.
Não está longe o tempo em que as mulheres dessa interessante parte do Brasil obterão as mesmas liberdades de que gozam as montevideanas e as buenairenses.
Mas essa época feliz não chegou ainda e, enquanto esperam, continuarão a suportar o jugo dos seus enfadonhos maridos, ou melhor, dos seus tiranos domésticos, espécies de Argos vigilantes que, não contentes de mantê-las na mais vergonhosa ignorância, ainda as encerram num aposento afastado, como escravas do himeneu…
Esquina das ruas Vigário José Inácio com General Vitorino – Luiz Terragno, 1860
É muito difícil penetrar nesse santuário misterioso: a severidade dos maridos só diminui um pouco quando o estrangeiro, depois de ter vivido algum tempo na cidade, prova, por sua boa conduta, que pode ser apresentado sem perigo à família do brasileiro, ao qual veio recomendado, ou que conheceu acidentalmente.
Então, o santuário lhe é aberto, mas não deve usar esse favor insigne, senão com a maior reserva e a maior circunspeção…
Desgraça e catástrofe para o que trair a confiança de um Argos brasileiro… Uma sova de pau será o mínimo da pena imposta por esse abuso.
O caráter sombrio e excessivamente ciumento dos brasileiros contribui, assim, ao isolamento, no qual as suas mulheres parecem estar condenadas a viver ainda algum tempo. Conheci mulheres joviais, bonitas, amáveis… e até graciosas, que não exigiriam mais do que ir às vezes dar um passeio, frequentar a sociedade, e enfeitar, animar com sua presença as reuniões masculinas, que eu achava tristes, insípidas, para não dizer intoleráveis.
Chegada de D. Pedro II em Porto Alegre em 1865 – Luiz Terragno
Ó, Voltaire, Ó, Légouvé, Ó, Madame de Staël, por que vossas eloqüentes respostas às sátiras, tão injustas quanto mordentes, dos Juvenal e dos Boileau não poderão ser lidas por todas as brasileiras? Adquiririam, ao menos, um justo sentimento de amor-próprio e de nobre dignidade, que lhes revelaria o que elas valem ou o que podem valer, e suas bocas não ficariam mudas, quando os pesados sofistas do gótico Portugal pretendessem inculcar-lhes princípios reprovados pelo mundo civilizado.
Porto Alegre é uma cidade muito nova.
Conta, apenas, uns sessenta anos, desde sua fundação. Pouco antes dessa época, seu sítio atual estava coberto de florestas sombrias, que serviam de asilo a jaguares, tamanduás, gatos-bravos e jacarés. Atualmente, é a capital da província do Rio Grande do Sul ou de São Pedro.
Pode ter doze mil habitantes, e até quinze mil devido à população flutuante de estrangeiros que vêm de toda parte, para ali comerciar temporariamente.
Nestes dois últimos anos, sobretudo, ela começou a experimentar um crescimento rápido, que vai sempre aumentando. Não foi pequena a minha surpresa, quando me garantiram que, há dois anos, construía-se, ali, uma casa por dia!
A cidade é tão regular quanto pode permitir a desigualdade de uma colina um pouco íngreme, sobretudo na parte superior. Procura-se, aliás, diariamente, nivelar o terreno e alinhar as ruas, que são todas dotadas de calçadas e dirigidas para os quatro pontos cardeais.
Festa de recepção a D. Pedro II, que de Porto Alegre, foi por terra à Uruguaiana em virtude da Guerra do Paraguai
As que vão para o norte e para o sul são as menos agradáveis de frequentar por serem traçadas no sentido da altura.
As que são paralelas à direção da colina são mais bonitas: duas, entre outras, a Rua da Praia e a da Igreja, são notáveis pelo grande número de lindas casas que apresentam. A primeira, que fica na parte baixa, é a mais comercial; encontram-se, ali, as lojas e as principais casas de negócio.
A outra, fica no alto da colina e, nela, estão a casa do governo da província, a tesouraria e a igreja principal, edifícios que só têm de notável sua extrema simplicidade. É, também, o ponto de encontro da sociedade nos dias de festas civis ou religiosas; a gente, ali, vai para gozar a frescura de uma bela noite e a vista encantadora de que tentei, antes, dar uma ideia.
Na parte mais baixa da cidade, à beira d’água, construíram-se e constroem-se ainda, diariamente, casas muito bonitas.
Praça da Matriz. Em primeiro plano, os alicerces do Palácio da Justiça (segunda metade séc. XIX). Bem a direita, o canto do Teatro São Pedro (1858). Em cima, à esquerda, o Palácio do Governo, que precedeu o atual Piratini.
São as do porto, expostas, às vezes, a inundações, como aconteceu nos fins de 1833.
Havia, porém, um projeto para a construção de um cais, com o qual se espera recuar bastante as águas e aumentar, em igual extensão, a área da cidade.
À margem do rio fica situada a alfândega, edifício quadrado, solidamente construído e bem próximo à zona comercial. Da parte que dá para o rio, parte um trapiche de madeira, levantado sobre pilares de pedra, que se prolonga uns cem passos dentro da água.
Na extremidade, há um vasto barracão, junto do qual colocaram-se alguns guindastes. Os navios podem atracar, ali, para carregar ou descarregar suas mercadorias. Os fardos, por pesados que sejam, são transportados por negros ao pátio da alfândega, para serem examinados; dali, outros negros (porque a raça africana tem no Brasil a função dos cavalos e das mulas) os transportam para seu destino. Terei ocasião, um pouco mais adiante, de dizer uma palavra sobre a sorte dos escravos na província do Rio Grande.
Construção finalizada em 1790 para abrigar a Provedoria da Real Fazenda, é o prédio mais antigo de Porto Alegre. Antes da instalação da Assembleia Legislativa Provincial em 1835, fora sede da Casa da Junta, Câmara e Conselho Geral da Província. A Assembleia Legislativa ali funcionou até 1967, quando se transferiu para o novo e moderno Palácio Farroupilha.
Viajantes, que tinham sido testemunhas da crueldade dos colonos franceses e ingleses, acharam o jugo dos escravos mais suportável no Brasil.
Mas eu, que vi, na Argentina e na Banda Oriental, os negros livres, industriosos, fazendo os brancos viverem e colocados, enfim, na posição de homens, tenho o direito de achar deplorável a sorte deles no Brasil e de denunciar a infâmia dos europeus, que não têm vergonha de levar a sua imoralidade até o comércio clandestino da carne humana!!!…
Ó, venerável abade de Pradt! Terias, também, sofrido, vendo as cenas dolorosas de que fui testemunha, mas a tua indignação, os teus lamentos, teriam reboado como o raio no meio desses homens que ousam chamar-se civilizados, enquanto os meus só terão eco na alma de alguns homens sensíveis, mas obscuros como eu.
Há em Porto Alegre cinco igrejas, um hospital, uma casa de beneficência, um arsenal, dois quartéis e uma prisão recentemente construída.
Há outros edifícios públicos em projeto, e cogita-se de aproveitar a planície, camada Vargem, edificando-se nela um museu e um jardim botânico. Porto Alegre, certamente, ainda será uma das mais belas cidades do Brasil e, ao mesmo tempo, umas das mais importantes sob o ponto de vista comercial.
Porto Alegre Vista do Guaíba – foto Virgílio Calegari – 1900
A educação é muito descuidada na província do Rio Grande, e isto se reconhece imediatamente: os moços destinados à advocacia, à medicina e ao sacerdócio são enviados à universidade de São Paulo.
Só havia escolas primárias elementares em Porto Alegre, quando por ali passei; entretanto, um português da Europa (sr. Gomes), juntamente com um jovem belga (sr. Giélis), acabavam de estabelecer uma escola primária superior.
O talento e o zelo desses professores contribuirão, com certeza, a despertar o gosto pela ciência adormecido, geralmente, sob uma paixão desenfreada pelo jogo e pela depravação.
Editam-se quatro ou cinco jornais periódicos, inteiramente consagrados à política. Os habitantes de Porto Alegre, como os das outras cidades do Império, estão divididos em dois partidos: o dos caramurus, que compreende os partidários e os defensores do governo monárquico, e o dos farroupilhas, partidários do governo republicano. Os últimos são os mais fortes, como em toda parte, mas desconhecem sua própria força. Aliás, os brasileiros em geral parecem ser pela República; mas, desgraçadamente, estão em dissidência, porque uns querem adotar a forma unitária e outros a forma federativa.
A primeira fotografia da Santa Casa no ano de 1888, foi o primeiro Hospital da cidade
O egoísmo, filho legítimo da ignorância e das pequenas paixões faz, ali, as vezes do patriotismo.
A província do Rio Grande, que lhes é, ao contrário, muito útil, desejaria a Federação, isto é, o isolamento mais ou menos completo; mas as outras proles protestam.
No fim das contas, ninguém se entende. Essa dificuldade de concordar sobre a forma retardará talvez o desfecho do movimento, e provocará, provavelmente, a anarquia entre os republicanos brasileiros. É de temer-se que, como na Confederação do Rio da Prata, o isolamento seja preferido e que tenhamos então dezoito repúblicas em vez de uma…
Mas não é aí que está o mal, e sim na anarquia a que podem ser levados, por muito tempo, povos cuja educação política não é muito avançada. Não se deve procurar outras causa às dissidências, senão na ignorância crassa, em que a política estreita de Portugal, ou do sistema colonial, tem procurado envolver o germe dos sentimentos generosos que brota, às vezes, entre os brasileiros, apesar de sua falta de instrução.
Igreja N. Sª das Dores e Antigo Quartel General – 1900
Não existia ainda teatro em Porto Alegre, porque não se pode, sem fazer Talia corar, dar esse nome a um velho barracão, meio subterrâneo, em que se representam, de tempos em tempos, comédias burguesas.
Havia um em construção, que será muito bonito, segundo me disseram. É pena que tenham escolhido o alto de uma rua (a Rua do Ouvidor) que se transforma em uma catarata nos dias de chuva.
Sinto ter de repetir, mas é uma verdade que não posso calar: as brasileiras dessa província não são nem belas nem graciosas. Em vão carregam-se e sobrecarregam-se de jóias, de fantasias, de flores, de bugigangas.
Não conseguem animar seus rostos, dar expressão aos seus olhos ou ter esse ar de liberdade nos movimentos que tanto seduz nas portenhas. Procura-se, em vão, ler em sua fisionomia seu estado de alma: nada indica, nem mesmo a ingenuidade. São, em público, simples figuras de autômatos. E tudo por obra dos portugueses!…
Diz-se que são ardentes na intimidade, apaixonadas até o excesso, mas apaixonadas por elas mesmas…
Diário de Porto Alegre, 1827
São compensações que procuram, avidamente.
Seu traje de festa é um vestido de cetim branco, bordado e palhetado de ouro e de prata, sapatos e luvas de cetim e muitas jóias. Os cabelos são enfeitados de flores artificiais. O vestuário comum é diferente. Ainda que sigam com prazer as modas francesas, preferem as cores berrantes e os desenhos bizarros.
Como são muito econômicas e sedentárias, cuidam muito de suas roupas, razão pela qual as modistas não fazem, em Porto Alegre, mais fortuna que os boticários. Um chapéu dura uma eternidade. São, sobretudo, as modas europeias, de há seis anos, que fazem sucesso no Brasil. Vi esses enormes chapéus de palha e tafetá, sobrecarregados de laços de fita; abrigos escoceses, vestidos vermelhos e outras monstruosidades semelhantes.
Theatro São Pedro em 1881, construído no local criticado por Arsène. Acervo do Museu Joaquim José Felizardo – Fototeca Sioma Breitman)
Os homens seguem, também, as modas parisienses.
São, falando de um modo geral, mais bem dotados em conjunto do que as mulheres, ainda que tenham um defeito comum, o nariz muito longo e pontudo. É uma leve modificação do nariz dos portugueses, que é mais grosso e carnudo. Os fisionomistas já sabem o que isso significa.
As igrejas são muito simples e pouco frequentadas. Só as devotas (beatas) e as cortesãs conservam, ainda, o vestido negro e a mantilha de Portugal, traje de igreja, outrora de rigor… outrora, quer dizer, nos bons tempos da Santa Inquisição, quando eram necessários não somente intérpretes para rezar a Deus como também um traje.
Como se aquele que criou Adão e Eva completamente nus fosse dar importância ao traje dos pobres seres humanos!
Se há pouco luxo dentro das igrejas, ainda se o conserva muito, por uma compensação naturalmente, nas procissões externas. As festas do Espírito Santo (Pentecostes) celebram-se com pompa, como no tempo do Concílio de Trento.
As janelas são enfeitadas de ricas colchas de seda bordada, com franjas de ouro; as confrarias azuis sucedem às confrarias vermelhas, as vermelhas às brancas e as brancas às cinzentas, etc.; cada uma delas leva relicários de santos ricamente enfeitados e, durante três dias, vendem-se, publicamente, ao lado da igreja, rosários, escapulários, galinhas assadas, doces, licores, etc… Viva Roma!!!
A maneira como viajam as mulheres nesta província, como, aliás, em todo o Brasil, é bastante curiosa: não têm nenhum escrúpulo de ir montadas como os homens, e para isso levam bombachas debaixo do vestido; além disso, vestem uma longa sobrecasaca, espécie de amazona, às vezes de fazenda azul, mas, ordinariamente, de chita florida ou listrada. Põem na cabeça um imenso chapéu de tafetá, feltro ou castor, enfeitado de plumas de avestruz negras e longas, que formam um penacho.
Imagem do livro: Portenha em traje de ir à Igreja – 1835
Ataviadas dessa maneira, parecem-se bastante às nossas altas e poderosas damas da nobreza campestre.
E não penseis que essas brasileiras do campo não tenham a sua dignidade natural; ao contrário, ainda que nunca tenham saído de sua estância, chácara, ou fazenda; que jamais tenham abandonado as suas vacas, suas plantações de algodão ou de feijão, senão para ir à cidade mais próxima e, ainda que vivam na mais crassa ignorância, não deixam de ter, no mais alto grau, suas vaidades, sua suscetibilidade e seus ares de altivez.
Quando resolvem viajar, seja para ir à cidade ou para visitar alguma vizinha, coisa que acontece raramente, ostentam um grande luxo nos arreios do seu cavalo. A rédea, a testeira, o recado, as esporas, os estribos em forma de turíbulo, tudo é recoberto de prata maciça.
É preciso que alguma mulher seja muito miserável para não ter ao menos a testeira, os estribos e as esporas de prata.
Os homens não são menos ostentadores: seus cavalos têm rabichos, barrigueiras e peiteiras, assim como o resto dos arreios cobertos de prata. Levam, também, na mão, como os argentinos, um pequeno chicote, cujo cabo muito curto é de prata maciça. O cabo e a bainha do seu facão são também de prata.
A vestimenta dos homens da campanha é mais rica que a dos gaúchos argentinos e orientais. Consiste de sólidas botas, largas bombachas de veludo azul-celeste, uma jaqueta de pano azul, um amplo manto de pano e um chapéu de abas muito largas levantadas dos lados, preso sob o queixo por um barbicho que termina em duas bordas.
Imagem do livro: Portenha em traje de festa (1835)
Muitos usam, no verão, jaquetas de chita colorida, e os de mais posição uma sobrecasaca, também de chita, espécie de robe de chambre. Todos vão armados, em viagem, de uma longa espada como nos tempos da conquista, e de um par de pistolas que pendem do cinturão com uma pequena cartucheira.
Os cinco rios que se reúnem diante de Porto Alegre, para formar o rio Grande, são, o Jacuí, o Caí, o rio dos Sinos, o Gravataí e o Riacho. O primeiro, a oeste, é o rio principal, e forma o polegar da mão aberta; o último, a nordeste, forma o dedo mínimo, e não pode ser navegado por grandes barcos.
O comércio é ativo em Porto Alegre.
Via sempre uns cinqüenta navios, tanto nacionais quanto estrangeiros, ocupando a enseada, sem contar com uma grande quantidade de pirogas de todos os tamanhos e de chalanas, destinadas ao transporte das mercadorias pelos cinco rios, e que facilitam tão admiravelmente as comunicações com o interior.
O Jacuí, principalmente, está sempre cheio de barcos de carga e de elegantes gôndolas. Ocupadas no transporte de inúmeros produtos da Europa, da América do Norte, ou das outras províncias do Brasil, para Rio Pardo e Cachoeira, pequenas cidades de muito futuro, sobretudo a primeira, que pode ser considerada o entreposto norte da província, incluindo a serra propriamente dita e as Missões do Uruguai.
Os navios europeus, com capacidade que não exceda duzentas toneladas e com calado inferior a dez pés de água, podem chegar até Porto Alegre.
Rua Vigário José Inácio com Voluntários da Pátria no final do século XIX
Não existiam, por ocasião da minha viagem, mais de três casas francesas estabelecidas em Porto Alegre.
Só uma delas fazia comércio direto com a França.
Das duas outras, uma trazia os artigos franceses de Buenos Aires e do Rio de Janeiro, onde são às vezes mais baratos do que no ponto de origem; e a segunda fazia um comércio extenso com os Estados Unidos, e era de propriedade do sr. Pradel, agente consular francês, homem muito estimável e geralmente estimado, o que é mais raro.
É preciso dizer (e que isto possa servir de exemplo à grande maioria de nossos agentes consulares) que é difícil encontrar-se um homem mais desinteressado, mais prestimoso, mais disposto a prestar um serviço que o sr. Pradel. Nunca aceitou nenhum emolumento, prova rara de patriotismo, digna de ser divulgada, podendo, assim, conservar sempre uma nobre independência.
Antiga Igreja Matriz e Capela do Divino em 1900 – foto de Virgilio Calegari
Mas não está nisso seu mérito maior; sem ostentação de seus sentimentos patrióticos, leva seu desinteresse – diria mesmo sua liberalidade – ao ponto de não perceber nenhuma remuneração pelos diferentes atos e assinaturas que se reclamam dele. Está sempre pronto a defender nossos direitos junto às autoridades do país, e, apesar do seu título modesto de agente consular, todos lhe fazem justiça e respeitam o nosso pavilhão.
Eis o tipo de homem que devia prevalecer na escolha dos que vão defender nossos interesses comerciais em países estrangeiros.
Se nem todos fossem capazes do seu desinteresse, todos poderiam ter sua experiência prática da legislação, dos costumes, do caráter da nação, junto da qual são mandados como representantes.
Contribuiriam, assim, grandemente, para evitar divergências entre comerciantes e particulares, aconselhando melhor uns e outros, quando fossem consultados. Esta homenagem prestada às virtudes cívicas de um distinto patriota não deve parecer suspeita da minha parte; basta saber-se que não tenho a honra de conhecer o sr. Pradel.
A maior parte dos navios que vão a Porto Alegre são americanos-do-norte, brasileiros, italianos e alguns ingleses. Vê-se, de quando em quando, um navio francês procedente de Marselha ou de Bordéus.
É raro, porém, que faça bons negócios, porque as mercadorias são de mau gosto, mal-escolhidas e inadequadas ao país. Do porto de Marselha, principalmente, saem carregamentos mais extravagantes e menos indicados… Seus vinhos e conservas são de uma qualidade detestável.
Não é somente em Porto Alegre que chegam carregamentos extravagantes. Acontece o mesmo em todos os portos do Brasil e do Prata. E há muita coisa, ainda, a dizer a esse respeito.
Cavalaria do Rio Grande – final do século XIX
Sabe-se, de um modo geral, que, dos artigos franceses de grande consumo no Brasil, muitos convêm a Porto Alegre;
Entretanto, a vizinhança dos orientais e argentinos faz com que os gostos dos habitantes do Rio Grande sejam, de certo modo, mistos; é preciso, pois, ter residido certo tempo no lugar para conhecê-lo bem e não fazer encomendas no estrangeiro sem estar munido de amostras, de modelos e de medidas, porque as melhores anotações, as indicações mais minuciosas, não dariam senão uma ideia imperfeita dos gostos e necessidades dos habitantes.
No Rio Grande, como em todas as antigas possessões espanholas e portuguesas, os negros e mulatos são a gente de ofício, isto é, os homens laboriosos, os trabalhadores, aqueles, enfim, que têm mais necessidade de empregar sua inteligência. Infelizmente, porém, não passam de escravos e, sobretudo, de negros!
Mercado Público de Porto Alegre em 1890
São, fatalmente, uns brutos, uns vis usurpadores do nome de homens.
E, entretanto, esses brutos asseguram a subsistência e todos os prazeres da vida aos seus indolentes senhores! Sabeis como esses senhores, em sua superioridade, tratam seus escravos? Como tratamos os nossos cães!
Começam por chamá-los com um assovio e, se não atendem imediatamente, recebem dois ou três tabefes da mão delicada de sua encantadora ama, metamorfoseada em harpia, ou um soco ou um brutal pontapé do seu amo grosseiro.
Se tentam explicar-se, são amarrados ao primeiro poste, e, então, o senhor e a senhora vêm, com grande alegria, ver flagelar, até que o sangue brote, aqueles que, as mais das vezes, só cometeram a falta bem inocente de não terem podido adivinhar os caprichos de seus senhores e donos!!!
Feliz, ainda, o desgraçado negro, se seu amo ou sua ama não tomar uma corda, um chicote, um cacete ou uma barra de ferro, e golpear, no seu furor brutal, o corpo do pobre escravo, até que os pedaços arrancados de sua pele deixem o sangue escorrer sobre o corpo inanimado, porque o comum, nesses casos, é levantar o negro desfalecido para curar suas feridas!
A antiga Doca do Carvão ao lado do Mercado Público em 1890 pouco tempo antes de ser aterrada para que no local fosse construída a Prefeitura de Porto Alegre.
E sabeis com quê?
Com sal e pimenta, como se trata a chaga de um animal que se quer preservar dos vermes! Pensam que esse tratamento não é menos cruel do que as chicotadas? Pois bem, vi essas coisas no ano da graça de mil oitocentos e trinta e quatro! E vi mais ainda.
Há senhores, bastante bárbaros, principalmente na campanha, que mandam fazer incisões nas faces, nas costas, nas nádegas, nas coxas dos seus escravos, para meter pimenta dentro delas. Outros levam seu furor frenético ao ponto de assassinarem um negro e lançá-lo como um cão ao fundo de um barranco.
E se alguém, estranhando sua ausência, perguntar pela sorte do negro, terá esta resposta fria: morreu. (O filho da p… morreu.) E não se fala mais nisso. Há, entretanto, leis severas para essa espécie de crime. Mas como observa o sr. Balzac “as leis nunca estorvam os empreendimentos ou dos grandes ou dos ricos, mas ferem os pequenos, que têm, ao contrário, necessidade de proteção”.
Intendência Municipal em 1900
Todos os dias, das sete às oito horas da manhã, podeis assistir um drama sangrento, em Porto Alegre.
Se fordes até a praia, ao lado do arsenal, defronte de uma igreja, diante do instrumento de suplício de um divino legislador, vereis uma coluna levantada sobre um pedestal de pedra, e junto a ela… uma massa informe, alguma coisa que pertence, certamente, ao reino animal, mas que não podeis classificar entre os bímanes e os bípedes…
Outro detalhe da Planta de Porto Alegre de 1839
É um negro!…
Um negro condenado a duzentas, quinhentas, mil ou seis mil chicotadas! Passai adiante, retirai-vos dessa cena de desolação: o infortunado não é mais do que um conjunto do membros mutilados, que se reconhecem dificilmente sob os pedaços sangrentos de sua pele flagelada.
“Negros libertos” vivendo na periferia da cidade. Foto de Lunara, 1900.
E há quem se admire de que os negros se revoltem contra os brancos! É curioso notar que os legisladores das colônias modernas empregam para defender o tráfico de negros os mesmos sofismas que combatem quando os turcos querem justificar o cativeiro dos brancos.
Periferia de Porto Alegre, início do século XX – fotógrafo desconhecido
Mas toda essa argumentação há de cair por absurda… E a aristocracia da pele passará como todas as outras aristocracias! Tempo ao tempo!
ISABELLE, ARSÈNE
Nascimento: 30 de março de 1806, Dieppe, França
Falecimento: 13 de janeiro de 1888, Le Havre, França
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