Como o Raça Negra me transformou em roqueiro
Como o Raça Negra me transformou em roqueiro.
Lembro que foi no calor abafado de Porto Alegre, num fim de tarde, depois de um dia de trabalho na oficina, que encontrei com o Rodrigo Bonjour na casa do meu vô. Ele tava na varanda da casa dos meus pais, tinha recentemente começado a namorar a minha irmã. Fiquei sabendo que ele tocava muito bem guitarra. Foi ali que tive a sacada e enxerguei a oportunidade de montar uma banda. Tive que mentir que sabia cantar e que já tinha algumas músicas feitas pra poder convidar ele. Na verdade, eu nunca tinha cantado, nem tinha músicas, mas tinha alguns poemas que sabia que poderiam ser musicados por alguém que já soubesse tocar.
PREDESTINAÇÃO
Eu também passei pelo clássico momento de pensar “já é muito tarde pra eu começar”. Mas, por persistência ou teimosia, aos 17 anos comecei a tocar violão. Era considerado bem tarde pra época. Nessa idade, todos os meus ídolos já tinham suas carreiras de sucesso e sempre acompanhava o fator “nasceu pra isso, toca desde os 10 anos de idade”, como se fossem realmente predestinados para aquilo. Eu precisava correr, o tempo me esmagava. Percebi que, pra ter alguma chance, tinha que buscar todos os anos de predestinação que não tinham acontecidos comigo.
DESCOBRINDO COMO FAZER MÚSICA
Eu queria fazer uma banda de música autoral, falar das coisas que sentia, mas não sabia como dizer. Lá no Sarandi, éramos na maioria filhos de proletários, de pais que sustentaram suas famílias com muita dificuldade. Tínhamos acesso a certas coisas, o básico. Não passei fome, mas cheguei a dormir algumas noites sem janta. Era uma vida sem muita diversão e com muita culpa. Fazer qualquer coisa ligada à arte era visto como hobby e, caso a gente insistisse nisso, era “coisa de vagabundo”. O Brasil estava recém saindo de uma grave situação econômica, de Sarney e Collor. Eram muito presentes a frustração e o medo de ter uma vida igual a dos nossos pais.
O som da primeira formação, ainda uma banda sem nome, era pesado, com muita distorção, letras confusas, berros desafinados e eu em alguns momentos tentando imitar o Jim Morrison. Era tudo muito ruim e misturado, como uma criança recém nascida que tem cara de joelho.
Eu ficava tentando colocar dentro da minha arte algo diferente, como as bandas de pagodes do anos 90 faziam. A minha favorita era o Raça Negra, que foi a primeira a regravar sucessos do rock brasileiro, “Pro dia nascer feliz” do Cazuza e “Será” da Legião Urbana. Achava essas misturas de gêneros algo muito rico e que seria a música brasileira do futuro. A vida foi andando e no álbum “Caso Real” em 2015, fizemos a regravação da música “Amantes”, do José Augusto, que fez sucesso com a banda de axé Araketu no início dos anos 2000.
REQUISITOS PRA ENTRAR NA BANDA
A banda teve alguns nomes antes, “Marreta Biônica” (homenagem ao personagem mexicano Chapolin Colorado) foi o primeiro e não chegamos a fazer show com esse nome. Não pegou, então mudamos pra “Absolon” (significa: senhor da paz), que fazia referência ao filme do mesmo nome. A banda era eu na voz, Rodrigo na guitarra, Felipe na guitarra solo, Álvaro no baixo e Daniel na bateria. Os grandes requisitos pra entrar na banda eram não usar drogas, gostar de Raça Negra e, como dizia o Tim Maia, estar “no caminho do bem”. Não precisava ser um grande músico, bastava gostar de refri, xis e pastel.