Drogas, morar em ocupação, e entender de onde eu…
Sobre drogas, morar em ocupação, e entender de onde eu vim
A história da Lítera se confunde com a minha. Me chamo André Barbosa Hernandez Neto e nasci na Zona Norte de Porto Alegre, no bairro Leopoldina. “Os invadidos” – esse era o apelido do conjunto habitacional do governo que estava abandonado, onde morei até os meus 7 anos. Meu pai e minha mãe eram batalhadores como a maioria das pessoas naquele lugar.
Durante esse tempo ocupando o prédio, juntaram dinheiro, pegaram emprestado aqui e alí, pra gente conseguir pagar um aluguel e aí fomos para a “Vila Leão”, no bairro Sarandi, na época o maior bairro da cidade. Era considerado um bairro de classe média baixa e algumas vilas de lá estão em processo de regularização até hoje.
Sarandirú
Um tempo depois descobri que, no centro da cidade, meu bairro era chamado de “Sarandirú”. Pra nós, que morávamos ali, era carinhosamente apelidado de “Saranda”. Foram episódios mais ou menos como esse que me fizeram, aos poucos, perceber que quem vinha de onde eu vim não podia fazer certas coisas e nem estar em certos lugares.
Era nesse contexto que eu vivia o conflito da vida moderna. Estava muito distante do porto, que dava o nome da cidade. Não me sentia morador de Porto Alegre – eu era do Sarandi. Era um bairro que tinha tudo que a gente precisava. Nem tão ruim a ponto de ser miserável, nem tão bom a ponto de ser pleno. Era o que tinha. Assim como muitos, sou filho de uma geração de pais que trabalhavam demais, sem lazer, passavam muitas horas na função do trabalho e no deslocamento até ele.
A família que mexe com espíritos
Sou o mais velho de três irmãos. Depois de mim veio a L. e o A. Somos a junção de um motorista, André F.B.H, e uma metalúrgica, J.L.V.H. Fui criado dentro de um ambiente espírita. Por isso, nas aulas de religião do colégio, me tiravam de dentro da sala. Não fiz catequese nem crisma, o que aumentava meu ar de estranho/esotérico/ocultista/
Bipolaridade e alcoolismo
Meu pai tinha transtorno bipolar e fazia uso de bebidas alcoólicas e drogas durante os períodos de recaída. Aliás, quando ele bebia era uma faca de dois gumes: quando bebia até um certo ponto, não muito, na minha inocência eu gostava, porque assim ele me deixava sair pra rua, jogar futebol (claro, o motivo era que ele e minha mãe iriam brigar ou então ele iria ficar horas trancado no banheiro ou na cozinha). Por outro lado, se bebesse demais, ficava violento. Aí não era bom pra ninguém… Hoje eu tenho um entendimento maior sobre isso, mas na época eu via ele como um grande vilão. Já busquei ele no chão da rua algumas vezes e levei pra clínicas de reabilitação outras tantas vezes. Quando eu era adolescente, muitas vezes ouvi piadas de colegas, que achavam engraçada aquela situação de ver o pai do André bebado, caído no chão. As crianças no colégio são cruéis quando querem. No começo eu tinha muita vergonha, mas depois eu passei a sentir raiva e muita tristeza. Quando ele conseguia se manter medicado e estável (fazendo uso de muitos remédios, sendo muitas fórmulas à base de carbonato de lítio), era uma pessoa doce, amável e um grande contador de história. Ele se tornava um gigante gentil. Era agoniante não saber quem ele iria acordar a cada manhã.
Minha mãe, sem palavras, é uma grande mulher. Forte, suportou muitas coisas em silêncio, não deixou que muita notícia ruim ou pesadelo chegasse na gente. Machucava ver minha mãe sofrer com isso, mas mesmo assim eu sei que muitas vezes reproduzi alguns comportamentos e causei sofrimentos à ela. Eu me tornei rebelde, desaforado, não queria estar ali. Mas mesmo com aquele ambiente totalmente contaminado de violência, nunca me envolvi com drogas – lícitas ou ilícitas. Eu via a droga como a grande causadora do sofrimento da minha família e da família dos meus amigos. Os bares no fim de tarde estavam sempre cheios com os pais. E as mães em casa, fazendo comida. Eu me sentia muito triste e impotente com aquela geração anterior à minha. Mães vivendo à base de remédios, pais alcoólatras, vidas infelizes. Enquanto isso, a propaganda na TV incentivava e estimulava o uso delas. Contrastando com as cores em excesso do final dos anos 80 e início dos 90, naquele momento a vida parecia ser cinza, preta e branca. Ainda era uma geração de muito consumo de coisas ruins, então era difícil viver num ambiente assim e não se portar da mesma forma.
Nem todos ficaram pra contar história
O tédio me consumia. Os antigos “campinhos” eram o ponto alto do meu dia, mas meu tempo pra jogar futebol lá também era regulado. Eu não tinha o que fazer no resto do dia. Com o dinheiro sempre contado pra sobreviver, nem cogitava conhecer outras partes da cidade. Muitos dos meus amigos encontraram meios de ocupar suas tardes, acharam uma forma de anestesiar aquela angústia. Eu, por viver em casa todo o mal que aquilo causava, optei pelo tédio.
Escrever sobre isso me faz lembrar do dia em que, com quase 30 anos, reencontrei um colega da quinta série. Perguntei pra ele da galera toda da Aldeia SOS, que foram nossos colegas. “Dos 12, 5 estão vivos, contando que 2 somos nós aqui.”
Nessa época, eu já tinha saído do Sarandi. E mais uma vez a vida me lembrou que a realidade, as estatísticas e as condições de onde eu vim são bem diferentes. Me senti privilegiado simplesmente por morar num bairro menos distante do centro. E também carreguei uma certa culpa naquele momento. Veio aquela sensaçãozinha de “estou fazendo algo errado”. Afinal, querer viver de arte não era pra mim. Não era pra alguém do Sarandi.
Me lembro de alguém um dia me perguntar “quantos por cento de pessoas tu já viu saírem daqui e fazerem sucesso?”. Ainda bem que eu não dei bola pra essa estatística.