Sobre drogas, morar em ocupação, e entender de onde…
Sobre drogas, morar em ocupação, e entender de onde eu vim
Por André Neto
A história da Lítera se confunde com a minha. Me chamo André Barbosa Hernandez Neto e nasci na Zona Norte de Porto Alegre, no bairro Leopoldina. “Os invadidos” – esse era o apelido do conjunto habitacional do governo que estava abandonado, onde morei até os meus 7 anos.
André Neto, fundador, compositor e vocalista da Lítera
Meu pai e minha mãe eram batalhadores como a maioria das pessoas naquele lugar. Durante esse tempo ocupando o prédio, juntaram dinheiro, pegaram emprestado aqui e alí, pra gente conseguir pagar um aluguel e aí fomos para a “Vila Leão”, no bairro Sarandi, na época o maior bairro da cidade.
Era considerado um bairro de classe média baixa e algumas vilas de lá estão em processo de regularização até hoje.
SARANDIRÚ
Um tempo depois descobri que, no centro da cidade, meu bairro era chamado de “Sarandirú”. Pra nós, que morávamos ali, era carinhosamente apelidado de “Saranda”.
Foram episódios mais ou menos como esse que me fizeram, aos poucos, perceber que quem vinha de onde eu vim não podia fazer certas coisas e nem estar em certos lugares.
Bairro Leopoldina, verão de Porto Alegre de 1985
Era nesse contexto que eu vivia o conflito da vida moderna. Estava muito distante do porto, que dava o nome da cidade. Não me sentia morador de Porto Alegre – eu era do Sarandi. Era um bairro que tinha tudo que a gente precisava. Nem tão ruim a ponto de ser miserável, nem tão bom a ponto de ser pleno.
Era o que tinha. Assim como muitos, sou filho de uma geração de pais que trabalhavam demais, sem lazer, passavam muitas horas na função do trabalho e no deslocamento até ele.
A FAMÍLIA QUE MEXE COM ESPÍRITOS
Sou o mais velho de três irmãos. Depois de mim veio a L. e o A. Somos a junção de um motorista, A.F.B.H, e uma metalúrgica, J.L.V.H. Fui criado dentro de um ambiente espírita. Por isso, nas aulas de religião do colégio, me tiravam de dentro da sala.
Não fiz catequese nem crisma, o que aumentava meu ar de estranho/esotérico/ocultista/batuqueiro/que-mexe-com-espíritos na turma. A catequese era um evento social, todo sábado o pessoal se encontrava, rolava os namoros e festinhas no salão da igreja.
Eu, como não era da paróquia, ficava de fora. Me colocaram então no grupo de jovens da sociedade espírita Homens de Boa Vontade, mas não tinha nenhum amigo que frequentasse lá.
BIPOLARIDADE E ALCOOLISMO
Meu pai tinha transtorno bipolar e fazia uso de bebidas alcoólicas e drogas durante os períodos de recaída. Aliás, quando ele bebia era uma faca de dois gumes: quando bebia até um certo ponto, não muito, na minha inocência eu gostava, porque assim ele me deixava sair pra rua, jogar futebol (claro, o motivo era que ele e minha mãe iriam brigar ou então ele iria ficar horas trancado no banheiro ou na cozinha).
Por outro lado, se bebesse demais, ficava violento. Aí não era bom pra ninguém…
Hoje eu tenho um entendimento maior sobre isso, mas na época eu via ele como um grande vilão. Já busquei ele no chão da rua algumas vezes e levei pra clínicas de reabilitação outras tantas vezes.
Quando eu era adolescente, muitas vezes ouvi piadas de colegas, que achavam engraçada aquela situação de ver o pai do André bebado, caído no chão. As crianças no colégio são cruéis quando querem.
No começo eu tinha muita vergonha, mas depois eu passei a sentir raiva e muita tristeza. Quando ele conseguia se manter medicado e estável (fazendo uso de muitos remédios, sendo muitas fórmulas à base de carbonato de lítio), era uma pessoa doce, amável e um grande contador de história.
Ele se tornava um gigante gentil. Era agoniante não saber quem ele iria acordar a cada manhã.
Minha mãe, sem palavras, é uma grande mulher. Forte, suportou muitas coisas em silêncio, não deixou que muita notícia ruim ou pesadelo chegasse na gente. Machucava ver minha mãe sofrer com isso, mas mesmo assim eu sei que muitas vezes reproduzi alguns comportamentos e causei sofrimentos à ela.
Eu me tornei rebelde, desaforado, não queria estar ali. Mas mesmo com aquele ambiente totalmente contaminado de violência, nunca me envolvi com drogas – lícitas ou ilícitas. Eu via a droga como a grande causadora do sofrimento da minha família e da família dos meus amigos.
Os bares no fim de tarde estavam sempre cheios com os pais. E as mães em casa, fazendo comida. Eu me sentia muito triste e impotente com aquela geração anterior à minha. Mães vivendo à base de remédios, pais alcoólatras, vidas infelizes.
Enquanto isso, a propaganda na TV incentivava e estimulava o uso delas. Contrastando com as cores em excesso do final dos anos 80 e início dos 90, naquele momento a vida parecia ser cinza, preta e branca. Ainda era uma geração de muito consumo de coisas ruins, então era difícil viver num ambiente assim e não se portar da mesma forma.
NEM TODOS FICAM PRA CONTAR HISTÓRIA
O tédio me consumia. Os antigos “campinhos” eram o ponto alto do meu dia, mas meu tempo pra jogar futebol lá também era regulado. Eu não tinha o que fazer no resto do dia. Com o dinheiro sempre contado pra sobreviver, nem cogitava conhecer outras partes da cidade. Muitos dos meus amigos encontraram meios de ocupar suas tardes, acharam uma forma de anestesiar aquela angústia. Eu, por viver em casa todo o mal que aquilo causava, optei pelo tédio.
Escrever sobre isso me faz lembrar do dia em que, com quase 30 anos, reencontrei um colega da quinta série. Perguntei pra ele da galera toda da Aldeia SOS, que foram nossos colegas. “Dos 12, 5 estão vivos, contando que 2 somos nós aqui.”
Nessa época, eu já tinha saído do Sarandi. E mais uma vez a vida me lembrou que a realidade, as estatísticas e as condições de onde eu vim são bem diferentes. Me senti privilegiado simplesmente por morar num bairro menos distante do centro. E também carreguei uma certa culpa naquele momento. Veio aquela sensaçãozinha de “estou fazendo algo errado”. Afinal, querer viver de arte não era pra mim. Não era pra alguém do Sarandi.
Me lembro de alguém um dia me perguntar “quantos por cento de pessoas tu já viu saírem daqui e fazerem sucesso?”. Ainda bem que eu não dei bola pra essa estatística.
Como eu virei gótico, trevoso e suave
Na adolescência, participei de gangues. Pra sair pra pichar ou pra brigar nas saídas dos colégios. Vi um guri levando tiro do meu lado (nunca soube o que aconteceu com ele), cheguei a roubar bonés e objetos pequenos por pura rebeldia. Queria testar os limites, mas, ao mesmo tempo, tinha muito medo de desapontar minha família. Em casa eu era uma pessoa, na rua outra.
GÓTICOS DO SARANDI
Um dia, estava sentado na frente dos blocos do condomínio em que morava e vi passar um cara de uns 18 anos, todo de preto, de botas, sobretudo e olhos pintados.
Aquilo me impressionou muito! Fui atrás dele pra tentar entender quem ou o quê ele era. Entrou dentro do bairro como se fosse um morador, mas era fácil reconhecer alguém de fora, ainda mais vestido assim. No Sarandi eram sempre as mesmas pessoas, ninguém de outro lugar vinha lá, mesmo os familiares/visitantes, até os carros a gente sabia de quem eram.
Segui até ele entrar no “Beco do Luterano”, que ficava de costas pra uma escola. Lá, pichou num muro enorme: “Punk is not dead”, “Góticos do Sarandi” e desenhou um caixão com uma cruz. Fiquei chocado! E aquilo me mudou pra sempre.
“Saí correndo pra casa sem ter coragem de comentar o que tinha visto, foi muito assustador.”
Como era em inglês, eu não tinha noção do que ele tinha escrito lá, mas o caixão indicava que a coisa não era boa. E aquele cara todo de preto… tinha um mistério que me dava muito medo, mas também me instigava, eu não resistia a curiosidade de saber quem ele era.
Voltava lá sempre, só pra ficar olhando pro muro. Ia escondido, porque não podia sair de perto dos prédios onde morava, era perigoso e os meus pais tinham me proibido. Um dia um amigo traduziu a frase pra mim. Agora eu sabia o que estava escrito, mas não entendia o que queria dizer. Inclusive a palavra “gótico” ninguém sabia o que significava, mas pra mim era alguma coisa a ver com noite e morte.
Quando eu voltava do beco, sentia vergonha de olhar um quadro com a imagem de Jesus que tinha lá em casa, me dava muita culpa de estar gostando daquilo.
A MÚSICA DA RUA DO VALÃO
Naquele momento, as bandas inglesas começam a chamar a minha atenção. Tinham as mesmas insatisfações, vidas bem parecidas, eram jovens do subúrbio britânico.
The Smiths, The Cure, Joy Division, Echo In The Bunnymen… elas pareciam retratar tudo aquilo que eu vivia com sua poesia, som. melancolia e fúria. Essas bandas do pós punk iriam influenciar o que mais tarde se tornaria a Lítera.
A identificação com a estética, as letras, a sonoridade parecia dar um sentido pra tudo aquilo que eu sentia.
Eu ficava no cordão da calçada, perto da casa de um cara da rua do valão (Av. Sarandi), pra ouvir as músicas que eu não fazia a menor ideia de quem eram, e nem de como procurar, mas eu amava. E era The Cure.
O espaço da música sertaneja e do pagode dos anos 90, além das boy bands, era muito forte. Nesse momento se dava o começo do fim do rock nas mídias de grandes massas. Bandas como o Nirvana, RadioHead e Pixies fecharam a tampa desse caixão.
No Brasil, o que viria depois seriam bandas de rock com elementos regionais, misturas, fusion e cada vez mais agradáveis pra mim, como Chico Science, Pato Fu, Los Hermanos… e eu tava amando isso.
Tempo de mecânico e sede de infinito
Aos 15 anos, fui trabalhar na oficina mecânica de caminhão do meu avô. O “Neto” do meu nome é por causa dele. Éramos grandes amigos, parceiros de viagem, de caça ao tesouro, entre outras aventuras que um dia eu conto aqui. Em seguida, fui morar em um quarto na oficina de mais ou menos 2×4 metros, era o quarto em que o meu tio Chico morava antes.
Nesse momento, o futuro ficava cada vez mais incerto pra mim. Tinha medo de ser pra sempre alguma coisa que não estava nas minhas expectativas, mas também não queria desapontar o meu vô. Dizer que não queria ser mecânico como ele seria uma grande decepção eu acho.
Não sabia ainda exatamente o que gostaria de ser, mas as opções que eu tinha eram: trabalhar como uma engrenagem numa profissão com que eu não me identificava ou seguir uma via que não era legal. Só que eu não queria nenhuma delas.
TU NÃO É HOMEM? TEM QUE AGUENTAR!
A vida numa oficina mecânica à moda antiga no inverno era fria, mais fria do que se pode imaginar. No verão, o calor era insuportável. A graxa do piso potencializava qualquer clima.
Era um trabalho pesado, e a única palavra de resiliência era que meus tios também passaram por aquilo e que na época deles era bem pior. Na minha cabeça, eu seria um fraco se não suportasse. O machismo molda a gente desde pequeno, ouvindo frases do tipo “tu não é homem? tem que aguentar!”.
Com certeza ali não era o lugar onde um adolescente gostaria de estar. A coisa era bem rústica, as ferramentas rudimentares e a insalubridade era vista como “sem frescura”. Ao mesmo tempo, havia muita sinceridade, pessoas de verdade.
Lá conheci gente fantástica, histórias de caminhoneiros com um conhecimento empírico inacreditável. A oficina nesse período era: meu Tio Chico, meu avô e eu de ajudante. Essas são duas das pessoas que construíram minha base, que me ensinaram sobre honestidade e sobre nunca desistir. Sabe aquelas pessoas que não tem tempo ruim? Eles. Hoje reconheço tudo que vivi e honro esses momentos.
No auge da puberdade, trabalhar lá acabou potencializando coisas boas e ruins que existiam em mim.
Comecei a escrever poesia nesse quartinho da oficina. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. Eu era muito organizado e meu tio ficava muito orgulhoso de eu manter o quarto sempre arrumadinho, mostrava pros clientes mais próximos todo faceiro. Acho que eu surpreendi.
Ele gostou muito da minha atitude, de eu ter feito algo legal sem ninguém precisar pedir. E eu ficava muito feliz de ver ele feliz.
Uma das coisas ruins era a vergonha de chegar na aula fedendo a diesel e com as mãos encardidas de graxa. Antes de ir, conferia mil vezes se estava tudo certo, mas mesmo assim tinha dias em que aquilo simplesmente não saía de mim.
Eu sonhava em conseguir um emprego em que pudesse trabalhar limpo, dentro de um escritório, pra poder ter mais tempo, ser respeitado e conseguir montar uma banda. Não sabia exatamente o que eu faria num escritório, mas achava bonita a ideia de estar com roupas limpas, sentado na frente de um computador, tomando um café.
A SAÍDA DA OFICINA
Meu avô, o Seu André, era muito conhecido e respeitado como mecânico do bairro. Ele morreu quando eu tinha de 15 pra 16 anos, em consequência de um câncer.
Foi muito triste. Com certeza o Tio Chico foi o que ficou mais arrasado. A família, pra mim, mudou com a partida dele. Brigas, disputa de bens, partilha familiar… assuntos delicados em que eu não quero tocar. Eu pensava, e cheguei a escrever na parede do meu quarto: “Não tínhamos nada e agora estamos brigando por nada”.
Segui trabalhando na oficina por mais uns anos. Ficamos eu e o Tio Chico lá. Ele sempre foi um grande exemplo de pessoa, sinceridade, dedicação e trabalho, ainda que sempre com muita dificuldade.
Nesse instante, eu sentia que aumentava ainda mais a responsabilidade sobre mim. Por levar o nome do vô e de alguma forma querer honrar a memória dele, sentia que eu tinha que “dar certo”, mas me frustrava a ideia de ter que ser mecânico.
Eu queria ter uma banda, ser um poeta. Era um conflito entre a necessidade de ter um emprego estável, seguir o negócio da família, e o meu sonho de ser artista.
Saí da oficina e deixava ali boas e más recordações. Muitas lições. Amadureci bastante. Acho que foi o que me salvou. Minha revolta de adolescente tinha dado lugar a uma explosão criativa e empática. Isso gerou em mim a reação de que eu iria mudar o eixo da minha vida a qualquer preço.
Fui morar na garagem dos meus pais, dividia a peça com um Monza 85. Quando meu pai ligava o carro, o cheiro de combustível penetrava nas minhas roupas, nas coisas todas, era um horror. Esse cheiro seguia comigo. E era assim que eu acordava todos os dias. Mas era meu cantinho, aquele pequeno espaço era o meu novo mundo.
A ORIGEM DA MINHA SEDE DE INFINITO
Passava os dias lendo Fernando Pessoa, Mario Quintana, Nietzsche, Schopenhauer, Augusto dos Anjos. Conversava muito com meu tio Carlos sobre filosofia. Foi numa conversa dessas em que ouvi pela primeira vez a expressão “sede de infinito”. Ele teve um papel fundamental na minha construção filosófica e ética. Influenciou a minha paixão por assuntos como idade média, cruzadas, pensadores e metafísica.
No verão, quando as ruas ficavam desertas, caminhávamos pela rua do valão no fim de tarde. Tudo isso foi se misturando com a vida insegura, os dias tediosos e um futuro incerto. Naquele momento parecia confuso, mas hoje consigo entender que aquilo era eu preparando a bagagem pra uma grande viagem em que eu nem sabia que embarcaria.
Como o Raça Negra me transformou em roqueiro
Foi nessa fase que encontrei com o Rodrigo Bonjour, na varanda da casa dos meus pais. Rodrigo tinha recentemente começado a namorar a minha irmã, e fiquei sabendo que ele tocava muito bem guitarra e vi ali uma grande oportunidade pra montar uma banda e o convidei.
Tive que mentir que sabia cantar e que já tinha algumas músicas feitas. Na verdade, eu nunca tinha cantado, nem tinha músicas, mas tinha alguns poemas que sabia que poderiam ser musicados por alguém que já soubesse tocar.
PREDESTINAÇÃO
Comecei a tocar violão aos 17 anos, o que era considerado bem tarde pra época, nessa idade todos os meus ídolos já tinham suas carreiras de sucesso e sempre acompanhava um fator “nasceu pra isso, toca desde os 10 anos de idade” como se fossem realmente predestinados pra isso.
Eu precisava correr, o tempo me esmagava, eu tinha que buscar todos os anos de predestinação que não tinham acontecidos comigo.
DESCOBRINDO COMO FAZER MÚSICA
Eu queria fazer uma banda de música autoral, falar das coisas que sentia, mas não sabia como dizer. Lá no Sarandi, éramos a maioria filhos de proletários, de pais que sustentaram suas famílias com muita dificuldade. Tínhamos acesso a certas coisas, o básico.
Não passei fome, mas cheguei a dormir algumas noites sem janta. Era uma vida sem muita diversão e com muita culpa. Fazer qualquer coisa ligada à arte era visto como hobby, caso a gente insistisse nisso, era “coisa de vagabundo”. O Brasil estava recém saindo de uma grave situação econômica, de Sarney e Collor. Eram muito presentes a frustração e o medo de ter uma vida igual a dos nossos pais.
O som da primeira formação, ainda uma banda sem nome, era pesado, com muita distorção, letras confusas, berros desafinados e eu em alguns momentos tentando imitar o Jim Morrison. Era tudo muito ruim e misturado, como uma criança recém nascida que tem cara de joelho.
Eu ficava tentando colocar dentro da minha arte algo diferente, como as bandas de pagodes do anos 90 faziam. A minha favorita era o Raça Negra, que foi a primeira a regravar um sucesso do rock brasileiro, “Pro dia nascer feliz” do Cazuza e “Será” da Legião Urbana. Achava essas misturas de gêneros algo muito rico e que seria a música brasileira do futuro.
A vida foi andando e no álbum “Caso Real” em 2015, fizemos a regravação da música “Amantes”, do José Augusto, que fez sucesso com a banda de axé Araketu no início dos anos 2000.
Thiago Marques ao fundo e André Neto, ensaio da Lítera em 2003
REQUISITOS PRA ENTRAR NA BANDA
A banda teve alguns nomes antes, “Marreta Biônica” (homenagem ao personagem mexicano Chapolin Colorado) foi o primeiro e não chegamos a fazer show com esse nome. Não pegou, então mudamos pra “Absolon” (significa: senhor da paz), que fazia referência ao filme do mesmo nome.
A banda era eu na voz, Rodrigo na guitarra, Felipe na guitarra solo, Álvaro no baixo e Daniel na bateria. Os grandes requisitos pra entrar na banda eram não usar drogas, gostar de Raça Negra e, como dizia o Tim Maia, estar “no caminho do bem”. Não precisava ser um grande músico, bastava gostar de refri, xis e pastel.
Absolon, o começo e o primeiro recomeço
Todo final de semana a banda se encontrava pra tocar as três únicas músicas. No começo na garagem do Álvaro, apenas com violões. Foi assim por muito tempo, só depois que começamos a revezar entre o estúdio Guedes no Sarandi e a garagem da casa da vó do Rodrigo no Humaitá, bairro industrial, afastado e meio deserto. Durante a semana o lugar era super agitado com o fluxo de funcionários das indústrias, já nos finais de semana não tinha uma viva alma.
O silêncio no bairro era tamanho que quando um de nós chegava atrasado, ouvia da estação de trem o som da banda tocando a muitas quadras de distância.
Até que conseguimos montar um repertório de músicas próprias com oito canções e uma versão para “Cartas aos missionários” da banda Uns e Outros. E assim fizemos o primeiro show num festival no Clube Comercial de Sapucaia, cidade satélite de Porto Alegre.
As músicas tinham nomes estranhos, nosso baixista insistia que tínhamos que ser uma banda “triste”, que o nosso som era deprê. Não sei da onde ele tirou isso, mas nosso repertório era: “Conspiração em segredo”, “Adolescente”, “Bungee Jump Presidente”, “A escuridão”, “Se eu fosse a verdade, não estaria mentindo”, “Museu de horror (Museu)”, “Esgoto”, “O Sol além do horizonte”. E covers: “Cartas aos Missionários”, dos Uns e Outros, e “Não Serve Pra Mim”, do Roberto Carlos.
Ainda assim, eu sentia que não era aquilo, não era a banda ideal pra dizer as coisas que eu precisava dizer. Não daquela maneira.
A Absolon era pesada demais, o instrumental não dava espaço para as métricas, não eram canções feitas pro cantor e sim para a banda tocar.
Todo mundo tocava bem, eu que ainda estava aprendendo a tocar as primeiras músicas.
Tocar violão me ajuda até hoje nas composições, então eu fazia o suficiente pra dar melodia no que eu queria e poder mostrar pros guris. Mas as minhas letras passavam por crises, eram pesadas e confusas, com metáforas complicadas demais e excessos de melancolia que nem sei se sentia tanto assim. Eu queria muitas vezes me parecer com os meus ídolos, copiava eles, ainda não tinha encontrado o meu método de escrever.
A banda começou a participar de festivais pela cidade e um deles foi tipo a nossa “consagração”, quando fomos premiados com o melhor instrumental do evento com a música “Conspiração em Segredo”, no Festival de Música do Colégio São Francisco. Foi a primeira vez que tocamos pra um grande público e então a zona norte da cidade ficou sabendo que a gente existia.
Pelos menos era o que a gente gostava de pensar. Em seguida veio mais um capítulo da história, quando depois do Festival de Música de Porto Alegre, em que tocamos pra quase 5 mil pessoas, eu decidi sair da banda e montar um outro grupo. Senti a necessidade de ter mais liberdade pra fazer rock com poesia, como fazia o The Doors, banda do Jim Morrison, do qual tinha me tornado muito fã. Queria compor e tocar músicas sem gênero, sem compromisso com um estilo, mas com atitude rock. É o início do meu primeiro recomeço.
Somos a Lítera, o segundo e o terceiro recomeço
A nova banda, ainda sem nome definido, era eu na voz, Rodrigo na guitarra, Rafael no baixo e Gabriel na bateria. Numa reunião pra discutir o nome da banda, sugeri “Lithium”, por causa da música do Nirvana e por ser uma medicação recorrente no meu ambiente familiar (que anos mais tarde eu também consumiria).
A internet ainda estava dando seus primeiros passos, mas já foi o suficiente pro “google da época” informar que existiam centenas de bandas cover de Nirvana com o mesmo nome. Ok, vamos pensar em outro. Durante esse período, fazíamos em média um ou dois shows por ano, tocando pra públicos muito pequenos. Dois shows foram cancelados por falta de público.
Rafael, Gabriel, Rodrigo e André
Assim as coisas foram indo, até que novamente a banda se classificou para o Festival São Francisco. Era a chance de alguma virada e, na semana do evento, pra fazer a inscrição, decidimos que o nome seria Lítera. Derivação de Lithium e algo próximo à palavra “literal”, de ser literalmente tudo ou nada. Parecia o nome perfeito.
Somos a Lítera! Nessa mesma semana, surge um novo revés, quando o baterista Gabriel anuncia sua saída da banda. Havia conseguido um emprego no estúdio “Nas Nuvens” do produtor Liminha no Rio De Janeiro, e não teria mais como seguir com a gente. Era uma oportunidade irrecusável. E aquela notícia caiu como uma bomba. Estávamos felizes por ele, mas tristes por perder o baterista.
DIÁRIO GAÚCHO
O Gabriel era o baterista perfeito, era sobrinho do Guedes, dono no estúdio onde aconteciam os ensaios e as sessões de pré-produção do disco que estava por vir. O jeito como ele tocava bateria era ótimo pra banda, pra sonoridade que a gente buscava, então não tínhamos ideia de como e onde iríamos conseguir um novo batera. Fizemos o show no festival, fomos capa do Diário Gaúcho, jornal de maior circulação nas regiões periféricas. No dia seguinte, a banda não tinha mais baterista e estava novamente sem rumo. O Sarandi não dispunha de um catálogo de bateristas.
Tivemos que recomeçar mais uma vez. A essa altura a gente não queria sofrer de novo procurando alguém que não estivesse com a mesma entrega, com vontade de viver da sua música. Foi aí que o Rodrigo, mesmo sendo o melhor guitarrista que já tinha passado pela banda, decidiu aprender a tocar bateria e assumir as baquetas.
Em seguida, o baixista Rafael convidou um amigo de bairro, Thiago, que estava aprendendo a tocar guitarra, pra entrar na banda. A gente já conhecia ele e a escolha foi certeira.
Lítera no Diário Gaúcho – Festival São Francisco
GREEN DAY
Muita gente passou pela banda fazendo testes, até chegar na formação que parecia ideal: Rodrigo agora na bateria, Thiago na guitarra, Rafael no baixo, eu na voz e mais tarde voz e guitarra. Todos tinham uma ligação muito forte comigo: Rodrigo era casado com minha irmã, com quem já tinha um filho; Rafael era meu amigo, éramos fãs de punk rock e colegas no curso técnico de informática, na Escola Mesquita; e o Thiago tinha sido meu vizinho anos antes – na época, eu era amigo das irmãs do Thiago, tínhamos cinco anos de diferença.
Eu era um adolescente com 15 anos e ele era uma criança voando de bicicleta pra cima e pra baixo com 10 anos. Acaso ou destino, a vida nos juntou novamente, eu na época com 23 e o Thiago com 18. E assim foi até as gravações do primeiro disco.
Parecia estar tudo bem, as coisas se encaminhando. Só que não. Tivemos uma nova baixa na banda: o Rafael, depois de uma discussão por email em que envolveu toda a banda, deixou a gente quando tínhamos três shows por fazer e um disco por gravar.
Ninguém teve culpa, éramos jovens, pólvoras prontas pra estourar. Assuntos que hoje seriam facilmente contornados, mas na época não tínhamos maturidade pra resolver. Fim de mais um ciclo.
Rodrigo, André e Thiago
Às pressas, contamos com a ajuda de amigos pra terminarmos os compromissos. Voltamos a gravar e a Lítera se tornou pela primeira vez um trio. Eu até gostava da ideia.
Nessa fase era fã de bandas que tinham power trio como formação, tipo o Green Day, que foi uma grande influência visual e estética para mim, que até hoje uso a correia da guitarra vermelha por causa do Billie Joe.
André Neto usando a correira vermelha em homenagem ao Billie Joe, vocalista do Green Day
E se todo mundo perceber que eu sou uma farsa?
Tendo apenas uma canção da primeira fase da banda (“Museu”, minha e do Rodrigo), todas as outras músicas nascem do meu novo parceiro de composição, o Thiago. Ele tinha várias músicas sem letra, foi muito fácil e rápido. Eu dizia que éramos Paul e Lennon do Sarandi.
Que ótimo, tínhamos 11 canções! Enfim, depois de muitos anos de espera, podemos gravar!
Com a nova formação sem baixista, Rodrigo e Thiago se revezavam nas gravações do baixo. A gravação dos instrumentos de cordas foram todas feitas no “home studio” que montamos na casa do Rodrigo, apenas a bateria e voz foram gravadas fora. Eu tive uma grande crise de ansiedade e depressão na fase da primeira gravação de voz. Tinha medo de não dar conta, tinha medo da crítica. Eram as primeiras vezes em que eu ouvia minha voz cantada gravada num som mais limpo, organizado… e não gostei do que ouvi (aliás, nunca gostei de me ouvir). As críticas ao meu vocal eram recorrentes nas primeiras audições. Sempre ouvia que a banda era boa, mas a voz deixava a desejar, faltava emoção, brilho e afinação nem se fala.
EU NÃO SOU CANTOR
Esse é um ponto importante de virada na minha vida: conheci o Iuri Sanson, vocalista da banda de metal Hibria. Era a melhor pessoa que eu poderia conhecer naquele momento.
Um ser totalmente dedicado, simples, com uma linguagem clara, motivadora e de um talento excepcional. Virou um grande amigo e produtor vocal. Ajudou a desenvolver minha personalidade de voz, a me expressar e por pra fora tudo que estava preso.
Era muito mais do que técnica, era emocional. Soube me preparar para o que estava por vir. Um cantor está sempre em desenvolvimento e aprimoração, mas sem essa base não sei dizer como estaria hoje.
Ele me ensinou que cantar bonito muita gente canta, mas cantar com o coração são poucos.
Iuri Sanson, participando do show da Lítera
Eu poderia ter desistido ali, cheguei a pensar nisso.
Nada até então tinha me colocado tanto pavor como registar a minha voz pra sempre e todo mundo perceber que eu era uma farsa. Eu não era cantor. Fiquei seis meses me preparando com o Iuri, e ele me acompanhou como um irmão mais velho em todos os dias de gravação, me incentivou em cada nota boa.
Foram incríveis todos os conselhos em forma de conversa nos intervalos, nas idas e nas vindas das gravações. Essa história merece um capítulo só pra ela, vou fazer isso um dia dando o devido mérito.
UM POUCO DE CADA DIA
Prestes a lançar o disco, o Rodrigo conhece o Lucas num site de bandas e ele entra pra fazer um teste sem compromisso.
Acaba ficando oficialmente e a banda volta a ser um quarteto com seu primeiro álbum independente gravado, o “Um pouco de cada dia”, em 2009. As letras foram todas escritas por mim, com exceção da música “Saudade”, canção instrumental do Thiago.
Ele chegou a me dar ela pra escrever uma letra, falou que era uma canção pro pai dele, e tudo que eu fiz foi por o nome. Disse que ela já estava pronta, pra deixar assim. E assim ficou.
Lítera: Thiago, Rodrigo, Lucas e André.
As letras do disco descrevem minha relação familiar, perda de amigos e um recém término de namoro que me levaram pra estatística da família – passei a tomar lithium diariamente. Não consegui escapar.
O dia a dia daquelas relações e minhas músicas autobiográficas se transformaram em uma ideia conceitual com a ajuda dos guris. O disco abre com a frase “no fim do mês, conta comigo… ” e termina com “…pra ver brilhar o nosso lar”.
Foi um alívio e uma grande emoção quando saíram as primeiras críticas. Todas muito positivas. Com certeza o disco marcava o início de uma nova etapa.
O álbum foi escolhido como “melhor lançamento de 2009” pela audiência do blog da RBS, afiliada da Globo aqui na região sul. Alguns medos foram amenizados, recebi muitos elogios sobre a minha voz. Mesmo assim não estava convencido, me preocupava mais com as críticas negativas do que com os aplausos.
O que as pessoas mais falavam e elogiavam eram as letras. Todo o desdobramento do lançamento desse disco me marcou de um jeito permanente.
Saudade, Boate Kiss e nossa chegada no centro
No lançamento de Um Pouco de Cada Dia, passamos a fazer parte da produtora Marquise 51. Foi quando saímos do Sarandi e fomos pro centro de Porto Alegre.
Começamos então a ter um certo reconhecimento na cena. Pra gente, estar ali era incrível, todo o rock gaúcho circulava por lá. Ficamos muito amigos dos guris da banda Identidade e o guitarrista Lucas Hanke (também sócio e produtor da Marquise 51), era quem cuidava da gente e nos ajudou pra caramba.
A nossa primeira turnê, nossos primeiros shows fora de Porto Alegre começaram ali, ainda em 2009. Naquele mesmo ano, em um show em Caxias, recebemos a notícia de que o pai do Thiago tinha falecido. Era o nosso primeiro grande show fora da nossa cidade, estávamos todos muito emocionados.
Assim que o show terminou, recebi uma ligação da namorada dele na época avisando o que tinha acontecido. Fiquei com a missão de dar a notícia e organizar nossa volta o quanto antes. Mas decidi não falar nada. Avisei os outros guris da banda e pedi pra que fossemos embora logo pra casa. Pensei
aquela noite inteira sobre a música “Saudade”, a que não consegui escrever uma letra e não sei porque sugeri esse nome… justo ela, que o Thiago tinha dito que fez pro pai dele. Mistérios da vida. Ou não.
ÉRAMOS UMA BANDA DIFÍCIL DE VENDER
No ano seguinte, fizemos uma mini turnê pelo Rio Grande do Sul como banda de abertura dos Faichecleres, uma banda clássica de rock gaúcho que estava fazendo essa turnê de possível retorno às atividades. As bandas não tinham nada um comum, mas foi ótimo.
Fomos bem recebidos. Ainda que muitas vezes diante de um silêncio e com finais de canções sem aplausos do público, a gente se divertiu.
A banda sempre fazia um fã ou outro, mas era muito pouco pra conseguir se manter ou impressionar quem quer que fosse, seja imprensa ou produtores. Começou a se criar um mito nos bastidores de que éramos uma banda difícil de vender, por não se encaixar em um estilo.
Diziam que éramos pop rock demais pra se encaixar no gênero “rock gaúcho”. Aí a produção da gente tentava vender pra casas de shows de pop rock, mas os contratantes nos achavam muito rock.
KISS
Em 27 de janeiro de 2013, a tragédia de Santa Maria na boate Kiss abalou o Brasil. Naquela noite, 242 jovens morreram. Muitos lugares fecharam as portas.
Existia e ainda existe muita coisa errada nas casas de shows. Muita gente mal intencionada se aproveitou do momento. Todos sofremos, quem não tinha um amigo ou conhecido lá, era amigo ou parente de alguém que tinha. O que já estava difícil, ficou pior. Apenas os grandes bares e teatros se mantiveram.
A máfia do alvará assombrava os pequenos lugares e fazia vistas grossas aos que tinham mais poder. Enquanto isso, os jovens e pais vivendo o luto. Não havia respeito nem consideração por parte de muitos órgãos públicos e privados.
OLHAR PRA DENTRO
As bandas undergrounds ainda em formação de público estavam numa encruzilhada. Não tínhamos clima pra fazer shows e nem as pessoas de irem. Claro que, com o tempo, as coisas foram voltando, mas muitas bandas acabaram nesse período.
Das que começaram a cena junto com a Lítera, no final da década de 2000, quase nenhuma restou. As que vieram na geração anterior a nossa já tinham um certo público e seguiram por mais um tempo, mas também perderam a força. Faltava espaço para shows e, para um contratante se interessar por ti, a banda tinha que oferecer algo novo, muito além do show.
O espetáculo tinha que ser uma experiência.
O clima de depressão era geral, precisávamos de músicas mais alegres, que ajudassem as pessoas – e a nós mesmos – a se sentirem mais felizes, a saírem daquele clima pesado que pairava na música e na vida noturna.
E nós, que estávamos tentando ser mais rock, vimos de camarote a decadência desse estilo. Não sabíamos mais como soar nossas canções. Era hora de olhar pra dentro.
Café com a Marquesa de Santos e o quarto recomeço
Caminhando numa tarde de outono em Porto Alegre, parei pra tomar café num lugar chamado Domitila, que já não existe mais.
Lá, as pessoas eram recebidas com pétalas de rosas e tinha uma tortinha de banana com doce de leite que eu comia chorando.
No cardápio estavam as cartas trocadas entre o imperador D. Pedro I e a Marquesa de Santos, a Domitila. Aquela experiência era o que eu buscava e na semana seguinte escrevi a música que virou o nosso novo single “Domitila”. Lançamos em 2012 de forma colaborativa em um dos primeiros crowdfunding de Porto Alegre.
No ano seguinte, decidimos fazer um disco dividido em 3 partes, que fosse popular sem perder a nossa essência. Não tivemos dúvidas: o nome do produtor Marcelo Fruet era o mais certo para aquela obra e assim foi.
Ele já tinha produzido Domitila, já existia química entre nós. Agora, era mão na massa! Começava ali uma virada de chave. Em seguida gravamos o EP 1 A Marquesa e fizemos a primeira turnê em São Paulo e Minas Gerais, com shows em circuitos alternativos e pequenos festivais no interior dos estados.
Foram 14 shows em um mês. Na volta, a banda já era outra. Um grande crescimento aconteceu. Na carreira, no pessoal e no público.
Lítera durante uma turnê em Pindamonhangaba, São Paulo
O momento exigia uma novidade, ser diferente. Lançamos o clipe de “Domitila” com uma estética inédita no Brasil, usando Tracking 3D e efeitos visuais e, ainda assim, falando de algo histórico.
Começamos a ganhar mais notoriedade e era momento de experimentar, se desprender da formação clássica guitarra-baixo-bateria. Foi assim que o pianista Fernando Spillari se tornou o músico que acompanhava a banda em alguns shows.
Teatro Renascença, lançamento do EP 2 O Imperador
PARTIDAS E CHEGADAS
Estava tudo dando certo, entramos pra gravação do EP 2 O Imperador e, durante a produção, o Lucas anunciou sua saída da banda pra se dedicar à sua produtora de filmes. Ele faria o show de lançamento como despedida. O show foi no Teatro Renascença em Porto Alegre, casa cheia. Lindo e triste. Foi uma saída amigável, mas dolorosa.
No tempo certo, pois tínhamos o substituto natural. O James era nosso fã, tinha feito a turnê do ano anterior com a gente e estava aguardando uma oportunidade.
Lucas Pinto, Ex-Baixista da Lítera
Enquanto nos preparávamos para começar a produção do disco e finalizar a terceira parte da saga, o Thiago também anunciou sua saída. A Lítera novamente entrava no estúdio com um dos integrantes deixando o grupo. Como consolo, sua saída também foi amigável, mas muito dolorosa.
Era um amigo de longa data que estava nos deixando. Perdi ali um grande companheiro de composição. Eu acho que no fundo eu entendia o pq dele ter saído, e não o culpava por isso. Já não tínhamos mais compatibilidade sonora e também era difícil ter um emprego formal, trabalhar na banda e suportar a pressão de família e amigos.
Lógico que dói. Doeu, mas tinha que seguir. Tínhamos as músicas, era a reta final daquele projeto que estava bem sucedido. O melhor momento da banda, não poderíamos parar ali. E não paramos.
André e Thiago em São José do Rio Pardo, SP – Durante a turnê da Lítera em 2013
Caso Real, reality show, Europa
Depois da saída do Thiago e do Lucas e da entrada do James, voltamos a ser um trio e agora tínhamos músicos para nos acompanhar na trajetória. É aí que entra a figura do Fredi Bessa, um grande guitarrista e amigo, que tem sua carreira solo e acompanha outros artistas.
Conheci o Fredi nos corredores da Marquise 51, com a sua banda de rock-jazz, o Sargento Malagueta. Estávamos completos. Junto com o Fernando Spillari e o Juba Cardoso no violão e guitarra. Tínhamos os guerreiros, estávamos prontos pra batalha e essa formação alternava conforme o formato do show e a agenda dos músicos.
O lançamento do disco Caso Real foi um sucesso, com o Teatro do Sesc lotado em Porto Alegre. O disco saiu pelo selo Loop Discos e no show tivemos participações dos ex-integrantes da banda e amigos que ajudaram a construir a nossa carreira até então. Foi incrível. Reunimos pessoas de vários eixos da cultura naquela noite.
Foi o começo de um reconhecimento maior na cena underground do Brasil. Todas nossas músicas nos shows são cantadas a plenos pulmões pelo público e canções como “Mergulho”, “Bercy”, “Domitila” e “Amantes” viraram hits indie.
Cena underground é muito curioso, pq em um lugar tu é muito conhecido e, em outros, ninguém faz a menor ideia de quem tu é.
Abrimos a Turnê Caso Real com o convite pra tocar no aniversário de 456 anos da cidade de São Paulo, no Solar da Marquesa. Fomos a primeira banda a fazer um show em um cemitério brasileiro, no Cemitério da Consolação, em São Paulo, onde está sepultada a Domitila.
Recebemos muito apoio de fãs, amigos, muitas dessas coisas aconteceram depois que conhecemos o Paulo Rezzutti, um grande ser humano, autor dos livros sobre a Domitila e D. Pedro I. Tocamos em muitas cidades, gravamos o programa Showlivre, em que a gente sempre quis tocar. Foi incrível mesmo, mas o ano de 2016 prometia ainda muito mais.
THE GAUCHOS
Eu apresentava um programa web de receitas caseiras junto com meu amigo Adelino Bilhalva, o Cozinheiro Amador. Fomos parar em um reality show da TV Record, o Batalha dos Cozinheiros, apresentado pelo Cake Boss Buddy Valastro.
Fiquei esperançoso, afinal, se conseguíssemos ficar no ar por um período, eu poderia tornar a Lítera mais conhecida, aumentaria o nosso alcance, estávamos feitos! Tratamos urgentemente de contratar uma assessoria de imprensa pra ajudar a potencializar nosso nome.
Fizemos um novo empréstimo, de 15 mil reais. Já estávamos devendo o disco, a prensagem do disco, nossas dívidas – só as desse período – já passavam de 50 mil reais. Ainda que tivéssemos bons shows, não estávamos ganhando o suficiente para pagar as contas e ter lucro. Muitos dos shows mal pagavam nossos custos, mas a gente entendia que estava em uma crescente. Era um investimento importante, precisávamos dar esse passo adiante.
O que parecia impossível aconteceu, vencemos o programa que ficou mais de 3 meses no ar em rede nacional e distribuição mundial. Era surreal! Naquele período, junto com o Adelino, fiquei muito famoso e conhecido como “O melhor cozinheiro amador do Brasil”. Mas a Lítera, não.
A banda seguia no underground e ralando muito. Até consegui entrevistas como na revista Caras, onde eu sempre tentava falar da banda, mas parece que o público não tinha interesse de ouvir o que eu cantava. Se não fosse pra falar de comida ou do Buddy, não havia interesse da imprensa. Houve um momento de frustração, pois criei uma expectativa de que a banda ganharia mais notoriedade, o que acabou não acontecendo.
Me senti um tanto mal, eu tinha prometido que daria essa alegria pra todos que tinham apostado na gente, mas não consegui. Usamos todo o prêmio pra pagar as dívidas, zeramos as mais antigas e seguimos com algumas mais recentes em aberto.
Eu andava nas ruas e as pessoas falavam comigo com se eu fosse o novo milionário.
Como se a Lítera tivesse agora muito dinheiro, tivesse “bala na agulha”, mas isso não era verdade. A banda não teve nada de beneficio dessa fama midiática, e logo isso mexeu muito com a minha cabeça, foi uma pressão muito grande e eu não soube lidar. Essa tal fama traz muita gente bacana, mas também muitas pessoas mal intencionadas. De primeira a gente nunca sabe quem são.
No final daquele ano eu fiquei muito mal, tive uma depressão profunda, fiquei dois meses em casa sem sair pra quase nada. Tentei ao máximo manter as aparências. Uma pessoa muito importante nesse processo de manter os pés no chão e se preparar para o que viria de ruim com tudo isso, foi a Dedé Ribeiro. A experiência, delicadeza de observar atenta as nuances do mundo, me salvaram e comecei a me reconhecer.
EX-PARTICIPANTE DE REALITY SHOW
Passada a febre, o sucesso relâmpago de uma celebridade instantânea de reality show, segui com a Lítera, como sempre foi. A frustração de não ter recebido atenção das pessoas quando tentei mostrar o que fazia meu coração bater, já estava mais resignada em mim.
No início de 2017, a banda recebeu o convite da Casa da Música da cidade do Porto, em Portugal, pra fechar o Festival de Verão daquele ano. Era a chave de ouro pra fechar nossa turnê. Se a banda começou por onde a Domitila viveu e morreu, encerrar onde D. Pedro I foi morrer, seria simplesmente incrível. Era um ciclo perfeito. Tínhamos ainda shows em Lisboa e na volta ao Brasil mais alguns compromissos no Rio Grande do Sul e São Paulo, mas consideraríamos esse show no Porto como um encerramento simbólico.
OLHA ONDE A GENTE CHEGOU
Tínhamos um cachê bem razoável pra fazer o show, em torno de 800 euros no Porto e mais 3 shows em Lisboa e Paris em que dependíamos da entrada de pagantes.
Só que as passagens em alta temporada pra Europa estavam caríssimas, então fizemos um show em Porto Alegre pra arrecadar essa grana e, apesar dos esforços do nosso pequeno grande grupo de fãs, não conseguimos tudo o que precisávamos.
Tínhamos um custo total de passagens aéreas, hospedagens, deslocamentos internos e alimentação próximo a 40 mil reais, e conseguimos arrecadar 12 mil reais. Ficou muito em cima da hora para comprar as passagens, que foram 80% da receita. Ainda tinha a correria de tirar os passaportes, enfim… ir era importante, tudo poderia acontecer durante e depois dessa viagem.
Casa da Música no Porto, Portugal
Fomos com o dinheiro contadinho, cada dia era uma vitória, e deu tudo certo. Os shows foram ótimos, éramos crianças, eu estava muito cansado e passei metade da gig com 12 aftas gigantes na boca.
Merecíamos aquilo, depois de passar tudo que a gente tinha passado, era por direito aquela paisagem, tocar em lugares históricos e pra pessoas de outros idiomas, foi surreal, com toda certeza ainda não sabemos como mensurar o que foi tudo isso.
Era inevitável olhar pro Rio Douro e pro Rio Sena e não lembrar do Valão do Sarandi.
“Olha onde a gente chegou”
Tudo novo de novo
Iniciamos mais um ano na terra, um novo ciclo, e os boletos das passagens nos esperando. Nos reunimos no início de 2018 e falamos de músicas novas, mostrei algumas, conversamos, trocamos ideias e decidimos que tínhamos um novo disco de músicas inéditas para ser registrado. Mas não poderíamos nos dar o luxo de tirar um tempo para dedicar à produção do terceiro álbum.
Decidimos fazer alguns show pontuais para quitar as dívidas e gravar o novo disco com recursos próprios. Seria um grande desafio.
Lítera no começo de 2018 fazendo a pre produção do disco novo
QUINTO RECOMEÇO
Como um destino que volta pra me ensinar alguma coisa que eu ainda não aprendi, foi a vez do Rodrigo deixar a banda. E, como um karma, eu terei que enfrentar. Lembro e sei que ele precisou negar e lutar contra tudo e todos pra viver a Lítera. Reconheço sua luta, desejos, necessidades e obrigações.
Foi o mais antigo companheiro. Não teríamos chegados aqui sem tudo que ele ajudou a construir, sem sua dedicação, esforço e entrega. É um grande músico, um grande ser humano, tem a minha admiração. Eu, como Lítera, farei com que tudo isso não tenha sido em vão.
Conversei com o James, ele sempre muito compreensivo e aberto a mudanças. Estamos crescendo juntos, aprendendo novos instrumentos, nos reinventando. Decidimos que o melhor é deixar o tempo passar, aliviar e com tranquilidade é que as novas ideias e oportunidades virão. Nunca foi fácil, a sensação de abandono é constante. As vezes me pergunto:
Qual é o sentido desse caminho?
O que ele espera de mim? O que eu espero dele? Entre os aventureiros de estação e os marinheiros de primeira viagem, quem sabe onde esse barco vai nos levar? O que é o ponto de partida, e pra onde estamos indo?
André Neto e James Pugens
Sabendo que é depois de muitos erros que nos corrigimos e melhoramos, confio que o melhor está próximo. É fé, não sei explicar. No fundo, agradeço a todos que já foram meus companheiros de banda. Por navegarem comigo boa parte desse mar da vida. Mais um ciclo se encerrou, mas as nossas jornadas seguem.
Ainda sou o mesmo só que diferente do que você conheceu
Cansei de ter que provar para os outros. É perda de tempo ficar tentando provar para os outros que tu pode. A construção deve ser pelo simples fato de que tu tem uma meta, um sonho, e esse caminho faz parte do destino.
Minha história não é sobre um complexo de vítima. É sobre redenção. Por mais que às vezes eu me sinta sozinho, essa jornada foi repleta de pessoas fazendo sua parte, alguns mais, outros menos, mas todos deram sua contribuição.
Uma vez eu li num post de instagram, nesses perfis de autoconhecimento, que “a vida é como uma viagem de trem, cheia de embarques e desembarques, de pequenos acidentes pelo caminho, de surpresas agradáveis com alguns embarques e de tristezas com os desembarques”. Alguns talvez façam essa viagem até o fim com a gente. Mas não sabemos quem vai ser.
Eu me pergunto: quando eu descer desse trem, do que eu sentirei saudade?
Essa viagem é cheia de atropelos, sonhos, fantasias, esperas, embarques e desembarques. Tenho apenas uma certeza sobre ela: o trem jamais volta. Então, se não for pra viver essa vida, realizando ou até tentando realizar o meu sonho, não faz sentido pra mim. Entender pq estamos, onde estamos, qual a nossa missão ali, o que fazer pra sair… No meio disso muitas pessoas tomam esse trem à passeio. E não tá errado.
Parafraseando o texto sobre o trem: felicidade enorme perceber que muitas pessoas, como nós, estão dispostas a reconstruir para recomeçar. Isso é tirar o melhor de todos os passageiros. Agradeço a Deus por todos que fazem parte dessa viagem e, por mais que os nossos assentos não estejam lado a lado, com certeza o vagão é o mesmo.
Essa é a minha/nossa história e, por incrível que pareça, ela recém começou. Pra quem tá com a gente há mais tempo, eu digo: segue a luta, nunca foi fácil, não seria diferente agora. Todos os insights de como lidar com esses problemas a gente vai compartilhar, vamo vê se a gente consegue se ajudar ou pelo menos se salvar.
Porto Alegre, sul da América do Sul.
Nossas músicas estão em todas as plataformas pra ouvir grátis.
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